Um dos pontos de grande interesse no ramo da propriedade intelectual é o tema da aquisição ou licenciamento de tecnologia, visto que o Brasil, como país em franco desenvolvimento, vem continuamente recebendo novas tecnologias advindas do exterior com o intuito de melhor capacitar-se economicamente. É por meio dos contratos de transferência de tecnologia que as partes nacional e estrangeira negociam e regulam tais interesses.
Um breve histórico sobre Contratos de Transferência de Tecnologia
A promoção da entrada de tecnologia, no Brasil, foi localmente regulamentada a partir do início da década de 70, quando, por meio da Lei nº 5.648 de 11 de dezembro de 1970, o INPI foi criado e nomeado como o órgão público responsável por intervir nos contratos de transferência de tecnologia, assim entendidos como os contratos que envolvem o licenciamento de direitos de propriedade industrial (licença de exploração de patente, licença de uso de marca, licença de desenho industrial etc.) e os contratos de franquia, fornecimento de tecnologia ou de assistência técnica especializada.
Como consequência, em 11 de setembro de 1975, o recém-criado INPI promulgou o Ato Normativo nº 15, adotando uma posição extremamente intervencionista nos contratos de transferência de tecnologia, que acabavam por tornar os processos de averbação contratual longos, com exigências que eram emitidas através de regras e interpretações próprias deste Instituto.
Além disso, contratos de transferência de tecnologia não podiam ser onerosos quando entre partes relacionadas, tendo em vista que a nossa Lei do Capital Estrangeiro (Lei nº 4.131 de 3 de setembro de 1962) proibia a remessa de royalties de uma filial para sua matriz controladora no exterior.
A partir dos anos 90, a economia brasileira foi se abrindo, permitindo cada vez mais a entrada de novas tecnologias provenientes de países desenvolvidos. Com a Lei nº 8.383/91, por meio de seu artigo 50, tornou-se possível a remessa de pagamentos entre subsidiária e matriz (controlada e controladora) decorrente de contratos de transferência de tecnologia assinados, averbados pelo INPI e registrados no Banco Central do Brasil (Bacen) posteriormente a 31 de dezembro de 1991, desde que respeitados os limites de dedutibilidade estabelecidos pela legislação fiscal.
Na mesma década, as regras relacionadas ao ingresso de tecnologias no Brasil foram aos poucos sendo flexibilizadas, com o advento do Ato Normativo nº 120/93 e da Lei nº 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial).
O artigo 211 da Lei 9.279/96, interpretado em conjunto com as leis tributárias, fiscais e de remessa de capital para o exterior, resultou na conclusão de que contratos de transferência de tecnologia deveriam ser averbados pelo INPI para as seguintes finalidades: (i) tornar possível a remessa de pagamentos para o exterior, desde que observadas as regras cambiais e tributárias; (ii) permitir a dedutibilidade fiscal destes pagamentos, desde que observada a legislação tributária; e (iii) produzir efeitos contra terceiros.
É importante notar, nesse sentido, que mesmo com a promulgação da Lei de Propriedade Industrial, o INPI continuava e, de certa maneira, continuou intervindo na autonomia das partes durante os processos de averbação dos contratos de transferência de tecnologia, em particular quanto à avaliação prévia do cumprimento das legislações fiscais e de remessa de capital para o exterior e de estabelecer algumas condições contratuais específicas, muitas vezes em detrimento do estipulado em lei.
Entretanto, com o passar do tempo, o INPI aos poucos foi adotando um posicionamento cada vez menos intervencionista na análise de contratos de transferência de tecnologia. Assim, com o objetivo de modernizar ainda mais o sistema de propriedade industrial no Brasil, bem como limitar a interferência do Instituto nos contratos submetidos à sua averbação, no ano de 2017 foi emitida a Instrução Normativa nº 70, em vigor desde 1º de julho de 2017.
Por meio da Instrução Normativa nº 70/2017, o INPI indicou que deixaria de fazer a avaliação fiscal/tributária dos contratos de transferência de tecnologia submetidos para averbação; os Certificados de Averbação/Registro passaram, desde então, a refletir apenas o valor e o prazo declarados pelas partes, ficando as contratantes responsáveis pela validade e licitude do contrato e das remessas de pagamento.
Posteriormente, no dia 07 de julho de 2017, o INPI promulgou a Resolução INPI/PR nº 199, que estabeleceu as novas diretrizes para o exame de transferência de tecnologia e de registro de topografia de circuito integrado, transferência de tecnologia e franquia, averbáveis ou registráveis no Instituto.
Em linhas gerais, a referida Resolução indicou as regras, formalidades e documentos que embasam os requerimentos de averbação ou registro, detalhando como transcorrerão os exames formal e técnico dos contratos. Caso as diretrizes estabelecidas pela Resolução não sejam observadas, o requerimento de averbação poderá sofrer exigências formais e técnicas, podendo, inclusive, resultar no indeferimento e/ ou arquivamento do pedido.
A Resolução INPI/PR 199/2017 complementou a Instrução Normativa nº 70/2017, que limitou o poder de interferência do INPI e retirou de sua esfera de atuação a análise fiscal e cambial dos contratos submetidos à averbação/ registro. Neste sentido, em todos os Certificados passou a constar a seguinte nota informativa: “O INPI não examinou o Contrato à luz da legislação fiscal, tributária e de remessa de capital”.
Em consonância com aquelas tais regras do INPI, o BACEN emitiu a Circular nº 3.857/2017, regulamentando o rito de processo administrativo sancionador para aplicação de penalidades, medidas coercitivas e métodos para solução de controvérsias. Assim, as remessas irregulares de royalties passaram a ser sujeitas ao processo administrativo sancionador.
Desta forma, não obstante o INPI não mais interferisse ou fizesse exigências quanto ao valor e prazo de pagamento dos contratos, permanecia a responsabilidade das partes contratantes em respeitar os limites de dedutibilidade fiscal previstos na Portaria do Ministério da Fazenda nº 436/58 que, no caso de contratos entre empresas com vínculo acionário direto ou indireto, também correspondiam aos de remessa de pagamento ao exterior.
Mudança maior veio em 2021, com a publicação da Lei n. 14.286/2021 – Marco Cambial, que trouxe modificações em diversas outras normas. A remessa de pagamentos para o exterior, a título de royalties, que antes demandava que os contratos de transferência de tecnologia fossem registrados junto ao INPI e ao Banco Central do Brasil, passou apenas a depender de prova de pagamento do IRRF (Imposto de Renda Retido na Fonte).
Dessa forma, o registro de contratos de transferência de tecnologia junto ao INPI, apenas tornava os valores dos contratos de transferência de tecnologia dedutíveis para fins de apuração do lucro real, observados os limites e as condições estabelecidos pela legislação.
Outro ponto importante, em relação aos contratos de transferência de tecnologia, foi a publicação da Lei n. 14.596/2023, que passou a valer a partir de 2024 (com a opção de adoção ainda em 2023), e que trouxe a aplicação das regras de Preço de Transferência em relação aos direitos intangíveis e aos royalties. Desde a sua vigência, foram revogadas as antigas regras cambiais e fiscais até então adotadas para as remessas e dedutibilidade fiscal dos pagamentos de royalties por intangíveis.
Com esta lei, as remessas de royalties e assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante devem observar as regras de Preço de Transferência.
Assim, para as operações internacionais envolvendo tais pagamentos entre empresas relacionadas, deve ser adotado um dos cinco métodos (PIC, PRL, MCL, MLT e MDL), com possibilidade de seleção do método mais apropriado à transação, ou, ainda outros métodos, desde que a metodologia alternativa adotada produza resultado consistente com aquele que seria alcançado em transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas.
Regras gerais aplicáveis à transferência de tecnologia no Brasil
Poderão ser levados para a averbação/ registro do INPI contratos cujo objeto sejam a licença de uso de direitos de propriedade industrial. São averbáveis/ registráveis pelo INPI:
- Contratos de Exploração de Patentes;
- Contratos de Exploração de Desenhos Industriais;
- Contratos de Licença de Uso de Marcas;
- Contratos de Cessão de Patentes, Desenhos Industriais ou Marcas;
- Contratos de Fornecimento de Tecnologia (know-how);
- Contratos de Assistência Técnica e Científica;
- Contratos de Licença de Topografia de Circuito Integrado; e
- Contratos de Franquia (Lei 8.955/94).
A averbação ou registro de um contrato de transferência de tecnologia junto ao INPI tem por objetivo produzir efeitos contra terceiros.
Os contratos de transferência de tecnologia só terão eficácia em relação a terceiros após averbação no INPI. A averbação destes contratos temos seguintes efeitos:
a) Garantia do direito exclusivo concedido ao licenciado, na hipótese de contratos de licença a título exclusivo; e
b) Legitimação do licenciado para figurar como parte em ações judiciais relativas à marca e patente, seja isoladamente, seja como litisconsorte do licenciador, se o contrato assim permitir.
Cabe observar que, no regime da lei em vigor, a averbação de contratos de licença de marca ou de patente não constitui condição de eficácia de uso da marca ou da patente por terceiros, desde que o titular possa comprovar que o usuário detém autorização para tanto.
Para partes relacionadas, a remessa de royalties ao exterior, que antes não podia ser superior aos limites de dedutibilidade previstos na Lei de Capital Estrangeiro e na Portaria do Ministério da Fazenda nº 436/58, que estabelecia os limites de dedutibilidade como sendo entre 1% a 5% da receita líquida de venda dos produtos contratuais, podem ser negociados livremente, diante das alterações legislativas citadas acima, porém os limites de dedutibilidade permanecem de acordo com as novas Regras de Preço de Transferência.
Também podemos citar que a Lei n. 14.596/2023 trouxe interessante modificação em relação aos prazos dos contratos. O revogado artigo 12, § 3º da Lei º 4.131/62, determinava que, para os contratos de serviços de assistência técnica e científica e de fornecimento de tecnologia, os limites de remessa e dedutibilidade não podiam ter prazo de vigência superior a 5 (cinco) anos, contados a partir da introdução de um processo de produção especial, prorrogáveis por um segundo período 5 (cinco) anos, desde que justificada a necessidade de renovação do vínculo tecnológico. Tal limitação deixou de existir com a vigência da Lei n. 14.596/2023, sendo possível prorrogar por prazos superiores a 10 anos sem apresentar um novo contrato, podendo um aditivo ao contrato ser suficiente para fins de registro no INPI.
O processo de registro/ averbação no INPI atual é totalmente digital, e não há necessidade de apresentar a via física do contrato ou de quaisquer outros documentos, salvo se expressamente solicitado pelo INPI em exigência, sendo que o Instituto passou a admitir a assinatura digital (sem a necessidade de certificado ICP-Brasil), que neste caso, também não é exigido o apostilamento/legalização consular. Nos demais casos, assinaturas físicas fora do Brasil, permanece a necessidade de apostilamento/legalização consular.
Apesar de o INPI estar mais rigoroso quanto aos aspectos formais dos contratos, a flexibilização na análise dos contratos significou uma redução substancial do tempo do processo de averbação/ registro dos contratos, visto que a maior parte dos Certificados passou a ser emitido entre 2 e 3 meses – metade do tempo que se levava há alguns anos atrás.
Contratos de Fornecimento de Tecnologia
No Brasil, a Lei da Propriedade Industrial não trouxe nenhuma definição ou critério específico voltado para a proteção e defesa de tecnologias não-patenteadas, ressalvada a responsabilidade pelo uso indevido de conhecimentos, informações ou dados confidenciais utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, que foram enquadrados nos crimes de concorrência desleal.
Nesse sentido, o INPI vinha adotando o entendimento de que os conhecimentos e técnicas que não são amparados por direitos de propriedade intelectual (o know-how) não poderiam ser proprietárias e, portanto, não poderiam ser objeto de licenciamento, devendo os seus contratos serem estabelecidos como a aquisição ou mera divulgação de conhecimento. Tal entendimento foi modificado ao final de 2022, quando, por meio da Ata de Reunião de 28 de dezembro de 2022, em vigor a partir de 23 de janeiro de 2023, o órgão, buscando alinhamento com as melhores práticas internacionais, passou a admitir a possibilidade de licenciamento de tecnologia não-patenteada, por entender se tratar de contrato atípico, recepcionado pelo art. 425 do Código Civil.
Refletindo este entendimento, temos as Portarias ns. 26/2023 e 27/2023 do INPI adotando uma abordagem mais flexível, podendo os contratos de de tecnologia não patenteada contemplar:
- a aquisição definitiva; e
- o licenciamento temporário para o uso de conhecimentos e técnicas que não estão cobertos por direitos de propriedade industrial, com o propósito de apoiar a produção de bens e serviços no país.
Tradicionalmente, contratos de fornecimento de tecnologia são definidos no Brasil como qualquer tipo de transação onde uma das partes transfere à outra conhecimento técnico utilizado na fabricação de um produto ou serviço, desde que tal transferência não tenha sido realizada majoritariamente por meio do oferecimento de serviços técnicos.
Nesse sentido, o que auxilia a caracterizar contratos de fornecimento de tecnologia são a entrega de documentos técnicos, como manuais, guias ou desenhos, e a remuneração que, nesses casos, é calculada com base em uma taxa de royalties sobre a venda líquida dos produtos ou serviços desenvolvidos com a tecnologia transferida.
Contratos de Software
No que se refere aos contratos de software, deverão ser levados a registro no INPI os casos onde há uma transferência efetiva de tecnologia para a empresa brasileira, ou seja, quando há a aquisição ou cessão da documentação completa sobre o software, em especial do código-fonte comentado, memorial descritivo, especificações funcionais internas, diagramas, fluxogramas ou outros dados técnicos necessários à absorção da tecnologia, para que tais contratos produzam efeitos em relação a terceiros (artigo 11, da Lei de Software – nº 9.609/98).
Licenças de software não necessitam passar pelo crivo do INPI, podendo suas remessas de royalties serem feitas diretamente através de banco comercial credenciado pelo Bacen.
Tributação
No tocante à tributação dos contratos de tecnologia e demais direitos de propriedade intelectual, entre empresas nacionais e estrangeiras, existe a possibilidade de incidência, a depender da modalidade contratual: do Imposto de Renda na Fonte (IRF) – 15%; da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) – 10%, com possibilidade de crédito nos contratos de licença de marca e patente; do Imposto sobre a Importação de Serviços (ISS-Importação) – alíquota máxima de 5%; da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público incidente na Importação de Produtos Estrangeiros ou Serviços (PIS/PASEP-Importação) – 1,65%; da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior (COFINS-Importação) – 7,6%; e do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) – 0,38%.
A constitucionalidade e a efetiva aplicação de alguns dos tributos acima ainda são questionáveis, e podem ser sujeitas à revisão pelo Poder Judiciário brasileiro.
Autora: Marina Inês Fuzita Karakanian
Dannemann Siemsen
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