35.1 INTRODUÇÃO
O setor de Ciências da Vida e Saúde no Brasil é altamente regulamentado e abrange todos os tipos de produtos que representam riscos à saúde, atividades hospitalares, clínicas, bem como demais atividades comerciais relacionadas à saúde, incluindo as mais recentes tendências na área.
1. CIÊNCIAS DA VIDA
2.1. VISÃO GERAL DA REGULAÇÃO BRASILEIRA EM SAÚDE
No Brasil, o campo das ciências da vida está diretamente relacionado à regulamentação da vigilância sanitária, considerando que a prática engloba, entre outros assuntos, produtos e serviços em relação direta com a saúde humana.
De acordo com a Lei Federal n° 8.080/1990, “entende-se por vigilância sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde”1.
Nesse sentido, o poder público possui competência para intervir no setor privado, em relação àqueles que fabricam e circulam bens e prestam serviços de interesse em saúde, a fim de evitar riscos e, portanto, danos à saúde humana.
Uma das entidades às quais esse dever/poder foi atribuído é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“Anvisa”), entidade do Ministério da Saúde (“MS”) que tem como finalidade institucional “promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias (…)”2.
Esse controle pode ser representado, principalmente, como a necessidade de obtenção de diversas permissões do Estado para a realização de atividades de interesse em saúde (isto é, que pode causar danos à saúde).
Os principais requisitos para que as empresas sujeitas à vigilância sanitária possam realizar suas atividades estão, de forma geral, descritos abaixo. Ressaltamos que esses requisitos podem variar de acordo com as atividades específicas da empresa e/ou com os produtos envolvidos. Assim, as medidas a seguir devem ser moldadas a cada situação específica.
1Lei Federal n° 8.080/1990, artigo 6°, § 1°.
2Lei Federal n° 9.782/1999, artigo 6°.
2.2. PRINCIPAIS REQUISITOS SANITÁRIOS
2.2.1. LICENCIAMENTO DA EMPRESA
A permissão para que empresas privadas operem, em nível federal3, com produtos sujeitos à vigilância sanitária é a Autorização de Funcionamento de Empresa (“AFE”), necessária para empresas que realizam o armazenamento, distribuição, embalagem, expedição, exportação, extração, fabricação, fracionamento, atividades de importação, produção, purificação, reembalagem, síntese, transformação e transporte de medicamentos e insumos farmacêuticos destinados ao uso humano, cosméticos, produtos de higiene pessoal, perfumes, desinfetantes para uso doméstico e embalagens de gases medicinais4.
Quanto aos produtos para saúde, além de a matriz da empresa precisar deter uma AFE, cada estabelecimento que realize as atividades supracitadas deve também ser licenciado. Embora os alimentos sejam sujeitos à vigilância sanitária, as indústrias de alimentos e seus prestadores de serviços são isentos de obter AFE.
Se o estabelecimento também maneja substâncias ou medicamentos controlados, conforme definidos pela Portaria MS n° 344/1998, é necessária a obtenção de Autorização Especial (AE) perante a Anvisa5. Licenças perante a Polícia Federal, Polícias Civis ou o Exército Brasileiro podem ser necessárias a depender das substâncias manejadas.
Em nível local, ou seja, estadual e/ou municipal, é necessário o licenciamento6 do estabelecimento que realiza atividades de interesse da saúde, conforme definido por cada lei ou regulação local. Neste caso, o licenciamento também de indústrias de alimentos e prestadores de serviços é obrigatório7.
Ainda, a depender das atividades realizadas, pode ser necessária a inscrição do estabelecimento perante um conselho regional profissional (ex.: de Química, Farmácia, Engenharia etc.) e o apontamento de responsável técnico, que se responsabilizará pelas atividades reguladas realizadas pelo estabelecimento8.
O motivo para a necessidade de aprovação prévia do estabelecimento pelas autoridades é a preservação da saúde, como prevenção ao risco que as atividades mencionadas acima representam.
Isso é evidenciado pelos requisitos para se obter uma AFE: garantir que o estabelecimento possua um sistema de qualidade9, condições de higiene, armazenamento e operação adequados às necessidades do produto, de modo a reduzir o risco de contaminação, o risco de alterar suas características etc10.
3Lei Federal n° 6.360/1976, artigo 50: O funcionamento das empresas de que trata esta Lei dependerá de autorização da Anvisa, concedida mediante a solicitação de cadastramento de suas atividades, do pagamento da respectiva Taxa de Fiscalização de Vigilância Sanitária e de outros requisitos definidos em regulamentação específica da Anvisa.
4RDC Anvisa n° 16/2014, artigo 3°.
5RDC Anvisa n° 16/2014, artigo 4°.
6Lei Federal n° 6.360/1976, artigos 51 e 52.
7Decreto Lei n° 986/1969, artigo 46.
8Lei Federal n° 6.360/1976, artigo 8.
9RDC Anvisa n° 16/2014, artigo 27, II, “b”.
10RDC Anvisa n° 16/2014, artigo 27, II, “e”.
2.2.2. REGULARIZAÇÃO DE PRODUTOS: REGISTRO E NOTIFICAÇÃO
Quanto aos produtos de interesse da saúde e, portanto, sujeitos à vigilância sanitária: medicamentos, insumos farmacêuticos, produtos para saúde, produtos de higiene pessoal, perfumes, cosméticos, saneantes, produtos para correção estética11, entre outros, são sujeitos a registro ou notificação perante a Anvisa, dependendo do risco à saúde que representam.
Trata-se de autorizações para que os produtos possam ser colocados no mercado após atestada sua qualidade, eficácia e segurança: o registro se aplica a produtos que representam um risco maior à saúde, enquanto a notificação se aplica a riscos menores, conforme estabelecido por cada norma específica à regulação de tais produtos (por exemplo, quanto a medicamentos, produtos para saúde, cosméticos).
Alguns alimentos podem ser sujeitos a registro na Anvisa, como os pertencentes às categorias de fórmulas para nutrição enteral, fórmulas infantis, e outros a notificação, a exemplo dos suplementos alimentares e alimentos para controle de peso12. Já os novos alimentos e novos ingredientes são sujeitos a autorização de uso13. No entanto, os alimentos em regra são isentos de registro ou notificação sanitários e sujeitos apenas a comunicado prévio de fabricação à autoridade sanitária local antes de serem fabricados14.
11Lei Federal n° 6.360/1976, artigo 25.
12Decreto-Lei n° 986/1969, artigo 3°. RDC Anvisa n° 27/2010, Anexo II.
13RDC Anvisa n° 839/2023.
14Conforme determinado pelas RDC Anvisa n° 27/2010 (alterada pelas RDC Anvisa n° 240/2018, n° 319/2019, n° 460/2020 e n° 418/2023) e n° 23/2000 (revogada parcialmente pelas RDC Anvisa n° 278/2005 e n° 27/2010).
2.2.3. CERTIFICADO DE BOAS PRÁTICAS DE FABRICAÇÃO
Dependendo do potencial risco à saúde, também é necessária a obtenção de certificação específica para a fabricação de determinados produtos (como medicamentos, insumos farmacêuticos ativos e produtos para saúde de alto risco), concedida pela Anvisa, que atesta que a unidade fabril cumpre com as Boas Práticas de Fabricação (“BPF”).
Para a concessão do Certificado de Boas Práticas de Fabricação (“CBPF”), há inspeção pela Anvisa das instalações da planta fabril para verificar se o regulamento técnico referente às BPF do produto em questão está sendo integralmente observado. A inspeção para atestar BPF em estabelecimentos situados no Brasil pode também ser feita pela vigilância sanitária local (do respectivo Estado ou Municipío).
No caso de produtos importados ao país, a Anvisa geralmente se locomove até o local de fabricação no exterior. Embora vários países exijam um CBPF local (GMPc), os requisitos de BPF definidos por cada país são diferentes, apesar de, nos últimos anos, a Anvisa ter adotado ações para padronizar critérios.
A Anvisa tem aceito relatórios e pareceres emitidos por entidades internacionais para determinadas situações. Nesse sentido, a Anvisa é uma agência certificada pelo Medical Device Single Audit Program (“MDSAP”), que “permite que uma Organização Auditora (OA) conduza uma única inspeção regulatória de um fabricante de produtos para saúde que satisfaça os requisitos impostos pelas Autoridades Regulatórias (AR) participantes”15: Austrália, Brasil, Canadá, Japão e Estados Unidos.
Logo, se uma empresa localizada em qualquer um dos países acima desejar exportar seus dispositivos médicos para o Brasil, poderá estar sujeita a uma auditoria local única, também válida no Brasil, ou seja, a Anvisa não precisaria inspecionar a planta fabril.
Justamente, a norma atual sobre concessão ou renovação do CBPF para produtos médicos16 traz critérios especiais em razão do MDSAP, do sistema Mercosul e do International Medical Device Regulators Forum (IMDRF).
Desde janeiro de 2021, a Anvisa é também membro do Esquema de Cooperação em Inspeção Farmacêutica (PIC/S), cujo objetivo institucional é a cooperação entre autoridades regulatórias em matéria de BPF de medicamentos para uso humano ou veterinário.
Em agosto de 2022 foi publicada a RDC Anvisa n° 741/2022, estendendo a possibilidade de aplicação de mecanismos de validação internacional a todas as categorias de produtos, sujeita à publicação de normas específicas para cada caso17.
Por exemplo, aos dispositivos médicos de classes de risco III e IV aplica-se a Instrução Normativa (“IN”) Anvisa n° 290/2024; a IN Anvisa n° 289/2024 dispõe sobre o registro e pós-registro de medicamentos, produtos biológicos, vacinas e de carta de adequação de dossiê de insumo farmacêutico ativo (Cadifa); e a IN Anvisa n° 292/2024 estabelece o procedimento otimizado de análise para concessão de CBPF a partir de relatórios de inspeção e documentação emitida por Autoridades Reguladoras Estrangeiras Equivalentes (AREEs).
No entanto, a Anvisa continua sendo a autoridade competente para conceder o CBPF às fabricantes de produtos inseridos ao mercado brasileiro.
O CBPF é aplicável à maioria dos setores de produtos de interesse para a saúde, mas na maioria dos casos não é uma licença obrigatória, como exposto acima. No entanto, dadas as diferenças inerentes a cada categoria de produto, existem várias regras que definem quais são as BPF relacionadas a diferentes produtos com as quais as indústrias precisam cumprir.
15Disponível em: https://www.fda.gov/media/90179/download?source=govdelivery&utm_medium=email&utm_source=govdelivery. Acesso em 4 de agosto de 2025.
16RDC Anvisa n° 687/2022.
17A referida resolução ainda dispõe que poderão ser adotadas outras práticas de confiança regulatória estabelecidas por regulamentos específicos, inclusive por meio de práticas de harmonização e convergência regulatória acordadas e operacionalizadas entre autoridades estrangeiras; assim como poderá ser utilizada documentação proveniente de organismos multilaterais, instituições internacionais ou de organismo terceiro, de acordo com as diretrizes e normativas de programas e mecanismos específicos dos quais a Anvisa seja parte.
2.2.4. DEFINIÇÃO DE PREÇOS DE MEDICAMENTOS PELA CMED
Para serem comercializados no Brasil, medicamentos devem ter seu preço máximo aprovado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (“CMED”). A CMED é a autoridade federal responsável pela regulação econômica do mercado de medicamentos e pelo estabelecimento de critérios para a fixação e ajuste de preços de medicamentos18.
O detentor do registro deve submeter à CMED documentação relativa ao preço de cada novo medicamento ou apresentação19.
As empresas são responsáveis por cumprir com os preços máximos aprovados pela CMED. O descumprimento das regras da CMED podem sujeitar as empresas às penalidades administrativas do Código de Defesa do Consumidor20.
Em março de 2021, a Anvisa publicou RDC relativa ao monitoramento econômico de dispositivos médicos estratégicos para a saúde pública. Por meio da norma, a Anvisa visa a contribuir com a redução da assimetria de informação no mercado de dispositivos médicos, fornecendo estatísticas dos preços históricos dos produtos21. O resultado desse monitoramento pode ser utilizado como referência de preços para compras públicas ou privadas de dispositivos médicos22.
Em julho de 2025, a Diretoria Colegiada da Anvisa aprovou a Abertura de Processo Administrativo de Regulação e a realização do Edital de Chamamento para coleta de subsídios à Análise de Impacto Regulatório para revisar a referida RDC.
18Lei Federal n° 10.742/2003, art. 6°, I e II.
19Lei Federal n° 10.742/2003, art. 7°.
20Lei Federal n° 10.742/2003, art. 8 e Lei Federal n° 8.078/1990, art. 56.
21RDC Anvisa n° 478/2021, artigo 4°, I.
22RDC Anvisa n° 478/2021, artigo 8°.
2.3. ATUALIDADES
A regulação brasileira de vigilância sanitária é muito ampla e, à medida que os produtos e a tecnologia evoluem, as autoridades regulamentam novos assuntos. Listamos a seguir algumas das tendências e os assuntos mais recentes relacionados à vigilância sanitária no Brasil.
2.3.1. APRIMORAMENTO DO MARCO LEGAL DE PESQUISAS CLÍNICAS
Apesar de já ter completado um ano desde a sua publicação, a Lei Federal n° 14.874/2024, que passou a disciplinar a nível federal as pesquisas envolvendo seres humanos, ainda carece de regulamentação.
Contudo, a Anvisa já vem atualizando o arcabouço regulatório sob sua responsabilidade, notadamente na forma da RDC Anvisa n° 945/2025, que dispõe sobre as diretrizes e os procedimentos para a realização de ensaios clínicos no país visando a posterior concessão de registro de medicamentos, e nos manuais acessórios publicados no começo de 2025.
Com a superação de vetos presidenciais que haviam sido impostos a determinados dispositivos da nova lei, o assunto segue em pauta e o setor regulado aguarda a regulamentação do tema.
2.3.2.CMED: NOVO REGIME INTERNO, PROPOSTA DE REVOGAÇÃO DA RESOLUÇÃO CMED n° 2/2004
No dia 05/06/2025, a CMED publicou a Resolução CMED n° 2/2025, que aprovou a atualização do Regimento Interno da Câmara e consequentes alterações na Resolução CMED n° 2/2004, que disciplina os critérios para definição de preços de produtos novos e novas apresentações.
Assim, após 21 anos de vigência, o Regimento Interno anteriormente disciplinado pela Resolução CMED n° 3/2003 foi substituído, agora prevendo, entre outros, atualização das competências e atribuições dos órgãos que compõem a CMED, maior previsibilidade acerca dos ritos e procedimentos administrativos e mecanismos de otimização da sua atuação.
Ademais, o órgão está analisando as contribuições enviadas pelo setor regulado relacionadas à Consulta Pública n° 1.330/2025, que tem o objetivo de revogar integralmente a Resolução CMED n° 2/2004, entre outras, e atualizar os critérios para definição de preços de produtos novos e novas apresentações.
2.3.3. NOVA RDC SOBRE FÓRMULAS INFANTIS E ALIMENTOS DE TRANSIÇÃO
A RDC Anvisa n° 976/2025 unificou o marco regulamentar aplicável a fórmulas infantis, fórmulas de nutrientes para recém-nascidos de alto risco, alimentos de transição e alimentos à base de cereais para lactentes e crianças de primeira infância, fórmulas para nutrição enteral e fórmulas dietoterápicas para erros inatos do metabolismo, antes disposto em atos normativos esparsos.
Além disso, com base em recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos e em conformidade com o Codex Alimentarius, a nova norma restringe o uso de açúcares nos produtos pertencentes às categorias reguladas.
Outros destaques incluem novos critérios de rotulagem e atualização das listas de constituintes autorizados para os produtos contemplados pela norma.
2.3.4. REVISÃO DO MARCO REGULATÓRIO APLICÁVEL A PRODUTOS DE CANNABIS
A Consulta Pública n° 1.316/2025, cujas contribuições enviadas pelo setor regulado já estão sob análise da Anvisa, visa a revisar a RDC Anvisa n° 327/2019, que criou a categoria de Produtos de Cannabis, dado o prazo de 5 anos que havia sido estipulado pela norma para aprimoramento do arcabouço aplicável.
Algumas novidades englobam a prorrogação da vigência das Autorizações Sanitárias concedidas para os produtos, novas vias de administração, possibilidade de manipulação em farmácias, exigência de CBPF para o produto final, ampliação dos profissionais que podem se habilitar a prescrever os produtos etc.
As empresas que atuam na área de Produtos de Cannabis aguardam a nova regulação enquanto aprimoram os seus processos e produtos à luz da regulação aplicável a medicamentos.
2.3.5. NOVAS MEDIDAS DE CONTROLE PARA MEDICAMENTOS AGONISTAS GLP-1
A RDC Anvisa n° 973/2025 alterou a RDC Anvisa n° 471/2021 com o objetivo de trazer um controle mais robusto quanto à prescrição e dispensação de medicamentos agonistas do receptor do peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1), utilizados no tratamento de diabetes tipo 2 e para perda de peso. Os principais princípios ativos dessa classe incluem a semaglutida, liraglutida e tirzepatida.
A medida surge em resposta ao aumento das notificações de uso indevido dos medicamentos da categoria, que têm gerado efeitos adversos maiores do que os previstos. A Anvisa pretende coletar informações sobre a distribuição desses produtos para fins de monitoramento, tendo estabelecido a obrigação de:
- prescrição em 2 vias;
- retenção da receita;
- escrituração das movimentações no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC); e
- alteração de rótulos para conter aviso sobre a retenção de receitas.
Ainda, a Agência esclarece que pretende criar IN específica para estabelecer regramento específico relacionado à categoria.
3. ASSISTÊNCIA EM SAÚDE
3.1. VISÃO GERAL DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E DE INVESTIMENTO ESTRANGEIRO EM ASSISTÊNCIA À SAÚDE
Embora inexista uma definição legal do termo “assistência à saúde”, este geralmente é entendido como os serviços prestados por organizações públicas ou privadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde humana.
De acordo com a Lei Federal n° 8.080/1990, as ações e os serviços públicos voltados à proteção da saúde humana são realizados por entidades públicas federais, estaduais e municipais que devem garantir o bem-estar físico, mental e social à coletividade. Entidades privadas podem participar do Sistema Único de Saúde (SUS) realizando atividades complementares.
A Constituição Federal estabelece que “é vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei”23.
Desde 2015, quando da entrada em vigor da Lei Federal n° 13.097/2015, a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde foi permitida nos seguintes casos: (i) doações de organismos internacionais relacionados à Organização da Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos; (ii) pessoas jurídicas destinadas a instalar, operacionalizar ou explorar: (a) hospitais gerais, incluindo hospitais filantrópicos, especializados, policlínicos, clínicas gerais e clínicas especializadas e (b) ações e pesquisa de planejamento familiar e (iii) serviços de saúde mantidos pelas empresas, sem fins lucrativos, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social.
23Constituição Federal, art. 199, § 3°.
24Lei Federal n° 13.097/2015, art. 142.
3.2. REQUISITOS DA REGULAÇÃO SANITÁRIA
Considerando que os hospitais realizam atividades que podem representar riscos à saúde pública e ao meio ambiente, estão sujeitos a diversos requisitos aplicáveis antes e durante a sua operação regular, a fim de atestar que as atividades realizadas estão em conformidade com as determinações legais aplicáveis.
Nesse sentido, listamos abaixo os principais requisitos aos quais os hospitais são sujeitos no Brasil, de acordo com a legislação e regulação brasileiras:
3.2.1. INDICAÇÃO DE UM RESPONSÁVEL TÉCNICO E REGULARIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS PERANTE OS CONSELHOS PROFISSIONAIS APLICÁVEIS
Em atendimento ao Decreto Federal n° 20.931/193225, hospitais públicos e privados de qualquer natureza, bem como laboratórios de análises, de ensaios clínicos, entre outros estabelecimentos que realizam atividades de saúde, apenas podem operar se estiverem sob a responsabilidade e a gestão técnica de médicos ou farmacêuticos, conforme aplicável, de acordo com as atividades realizadas.
Logo, os hospitais devem nomear um médico para ser o responsável técnico do estabelecimento. O responsável técnico deve estar devidamente inscrito no Conselho Regional de Medicina (“CRM”) do Estado em que está localizado o hospital26.
Após ser devidamente nomeado, o responsável técnico deve supervisionar e coordenar todos os serviços médicos prestados pelo hospital.
Outras atribuições do responsável técnico são: (i) solicitar o registro da empresa perante o CRM (conforme explicado no item 3.2.2. abaixo)27, (ii) informar o CRM de quaisquer modificações em relação à sua condição de responsável técnico, bem como (iii) informar anualmente ao CRM sobre todas as alterações do estatuto da empresa e sobre as mudanças na equipe clínica do hospital.
Dependendo das atividades realizadas pela empresa, que devem ser descritas nos procedimentos internos do hospital, poderá ser necessário obter também certificações e autorizações perante outros conselhos profissionais.
Assim, outros profissionais de saúde (como enfermeiros, fisioterapeutas, farmacêuticos) que trabalham no hospital também devem ser registrados perante seus conselhos profissionais correspondentes, e o hospital deve nomear um técnico responsável para cada uma dessas áreas, sempre que aplicável.
26Decreto n° 20.931/1932, arts. 24 e 28.
27Resolução CFM n° 997/1980, art. 11.
28Resolução CFM n° 997/1980, art. 3°.
3.2.2. CADASTRO DA ENTIDADE PERANTE O CRM E OUTROS CONSELHOS PROFISSIONAIS
É obrigatório o cadastro dos estabelecimentos de saúde e de suas filiais, divisões e subsidiárias no CRM onde estão localizados (como pessoas jurídicas)28.
Esse cadastro também é necessário perante outros conselhos profissionais aplicáveis, dependendo dos outros profissionais que trabalham no hospital, conforme explicado acima.
3.2.3. OBTENÇÃO DE LICENÇAS SANITÁRIAS
Conforme mencionado anteriormente, a vigilância sanitária é responsável por fiscalizar as atividades e produtos considerados “de interesse para a saúde” no Brasil, incluindo, portanto, o funcionamento e a infraestrutura dos estabelecimentos de assistência à saúde e a operação de farmácias e drogarias.
As autoridades sanitárias estaduais e municipais são responsáveis pelas inspeções locais e pela supervisão do cumprimento da legislação e regulamentação federal e local, inclusive no que refere às atividades hospitalares.
Os hospitais devem obter licenças da autoridade sanitária local correspondente (Estado ou Município, dependendo do local)29, juntamente com as demais licenças necessárias para suas atividades específicas, que se referem à especialidades médicas e suas instalações e regulamentos internos (por exemplo, para UTIs – Unidades de Terapia Intensiva, sujeitas a regras da Anvisa, do MS e dos conselhos profissionais).
A legislação, regulação, licenças e requisitos necessários variam em razão de cada Estado e Município. Assim, é necessário estudar as regras estaduais e municipais às quais o hospital é ou será sujeito, considerando suas atividades e instalações internas. Com essas informações, o hospital pode avaliar quais são as licenças aplicáveis, bem como quais são os requisitos e procedimentos para obter tais autorizações.
Caso o hospital terceirize parte de suas atividades, as empresas terceirizadas também deverão possuir as licenças necessárias, sempre que aplicável.
3.2.4. INSCRIÇÃO NO CADASTRO NACIONAL DE ESTABELECIMENTOS DE SAÚDE (“CNES”)
Todos os hospitais também devem ser inscritos no CNES, um banco de dados público mantido pelo MS com o objetivo de compilar informações gerais de hospitais e clínicas médicas no país, incluindo atividades e especialidades realizadas, tamanho, número de leitos e funcionários.
Os hospitais se enquadram na definição determinada pela Portaria de Consolidação do MS n° 1/201730: um estabelecimento de saúde é um “espaço físico delimitado e permanente onde são realizadas ações e serviços de saúde humana sob responsabilidade técnica”.
O objetivo do CNES é a estruturação e a elaboração de políticas públicas em saúde. Conforme explicado em 3.1, os hospitais privados também fazem parte do sistema de saúde brasileiro como estabelecimentos de saúde suplementares.
Portanto, a inscrição no CNES é necessária antes da operação do estabelecimento de saúde. Essa inscrição precisa ser atualizada com frequência, como condição para a manutenção das atividades.
28Resolução CFM n° 997/1980, art. 2°.
29Decreto n° 20.931/1932, art. 24.
30Portaria de Consolidação do MS n° 1/2017, art. 360, II.
3.2.5. OBTENÇÃO DE LICENÇAS AMBIENTAIS
A Lei Federal n° 6.938/198131, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, prevê que as atividades potencial ou efetivamente poluidoras devam ser devidamente licenciadas pelas autoridades estaduais competentes antes da operação.
Considerando que os hospitais (i) oferecem diferentes tipos de tratamentos, que podem abranger substâncias perigosas; (ii) normalmente realizam vários serviços complementares, como farmácia, lavanderia, transporte, limpeza, que também envolvem o gerenciamento de todos os tipos de substâncias que podem poluir o meio ambiente; e (iii) utilizam grandes quantidades de água e energia para manter as operações em andamento, é necessário que os hospitais solicitem às autoridades competentes as licenças ambientais necessárias antes do início de suas operações.
Licenças ambientais específicas para outras atividades do hospital também devem ser mantidas e renovadas.
3.2.6. OBTENÇÃO DE AUTO DE VISTORIA DO CORPO DE BOMBEIROS
Todos os estabelecimentos precisam ser inspecionados pelo Corpo de Bombeiros local e receber o certificado que comprova que as instalações estão em conformidade com a regulação local para evitar incêndios. Esta certificação leva em consideração a capacidade do edifício para acomodar um certo número de pessoas, medidas de emergência, o posicionamento estratégico dos extintores de incêndio etc.
Isso também é aplicável aos hospitais, que precisam observar a regulamentação estabelecida pelo Estado em que estão localizados.
3.2.7. TELESSAÚDE
A prestação de serviços de saúde à distância é, atualmente, regulamentada pela Lei Federal n° 14.510/202232. A previsão expressa dessa modalidade na legislação brasileira decorreu da evolução normativa desencadeada pela pandemia da Covid-19, a partir de 2020.
Apesar de a telessaúde abranger hoje a prestação remota de serviços relacionados a todas as profissões da área da saúde regulamentadas pelo Poder Executivo federal33, é interessante notar que no início de 2020 apenas a Resolução CFM n° 1.643/2002 dispunha sobre o tema, que era aplicável somente à prática médica. Além disso, a norma apenas regulamentava a telemedicina como interação entre médicos, não envolvendo pacientes.
Com o advento da pandemia da Covid-19, fez-se necessária a flexibilização dos atendimentos médicos presenciais para evitar exposição desnecessária a possíveis infecções. Sendo assim, a Portaria MS n° 467/2020 e, posteriormente, a Lei Federal n° 13.989/2020 autorizaram o uso da telemedicina durante a pandemia de Covid-19 até o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (“ESPIN”) correspondente.
No ano de 2022, antes do fim da ESPIN, entrou em vigor a Resolução CFM n° 2.314/2022, que revogou a Resolução CFM n° 1.643/2002. Assim, hoje é permitida a realização de consulta médica com pacientes, de forma não presencial, tanto de forma síncrona (em tempo real) como assíncrona (off-line).
Finalmente, após a publicação da Lei Federal n° 14.510/2022, ficou definitivamente autorizada a prática da telessaúde em todo o território nacional. Sendo assim, não somente a prática da medicina ficou permitida, mas também a prática de outros serviços de saúde que haviam sido regulamentados apenas durante o período de pandemia provocada pelo coronavírus, como atendimento remoto por psicólogo, nutricionista, fonoaudiólogo, entre outros.
É importante que os interessados na prestação de serviços de telessaúde informem-se a respeito dos requisitos para tanto, conforme detalhados na regulação publicada por cada conselho profissional competente.
31Regulamentada pela IN Ibama n° 13/2022.
32A Lei Federal n° 14.510/2022 alterou a Lei Federal n° 8.080/1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
33Lei Federal n° 8.080/1990, art. 26-A.
3.2.8. REGULAÇÃO DE FARMÁCIAS E DROGARIAS
No Brasil, farmácias e drogarias estão sujeitas à: (i) legislação federal de saúde; (ii) regulação da Anvisa; (iii) legislação estadual e municipal (local); e (iv) regulamentação e padrões éticos editados pelo Conselho Federal de Farmácia (“CFF”).
A legislação federal de saúde estabelece que as farmácias e drogarias devem deter licenças para operação34, que são a Autorização de Funcionamento de Empresa (AFE) e Autorização Especial (AE), esta última devido a drogas ou substâncias controladas, nos termos da RDC Anvisa n° 275/2019, além de licença sanitária local.
Além disso, a farmácia ou drogaria deve estar cadastrada no Conselho Regional de Farmácia onde está localizada (“CRF”), além de ter um responsável técnico devidamente registrado nesse CRF35.
3.2.9. PROJETO BÁSICO DE ARQUITETURA
Antes da construção, expansão, reforma e/ou adaptação, todas os estabelecimentos de saúde precisam ter o correspondente Projeto Básico de Arquitetura (“PBA”), aprovado pelas autoridades locais de vigilância sanitária.
A RDC Anvisa n° 51/2011 e a RDC Anvisa n° 50/2002 listam os requisitos técnicos do PBA com relação aos padrões de arquitetura e engenharia, e determinam que o PBA precisa ser arquivado nas autoridades competentes do Estado ou Município, dependendo do local, para a emissão de um parecer técnico.
A construção, expansão, reforma ou adaptação deve ser realizada de acordo com o PBA aprovado pelas autoridades. Ao final da construção/reforma, a pessoa responsável pela sua execução e o representante legal do estabelecimento devem assinar um Termo de Responsabilidade, alegando que a construção foi realizada em conformidade com o PBA. As autoridades de vigilância sanitária podem fazer inspeções a qualquer momento para verificar o cumprimento destas medidas.
34Lei Federal n° 13.021/2014, art. 6°.
35Resolução CFF n° 638/2017, art. 43 e seguintes.
Autores: Victor Hugo Callejon Avallone
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