Doing Business in Brazil

32.1. Criminal

20/08/24

A tutela jurídica do meio ambiente vem passando por claro processo evolutivo. Até meados do século XX a tutela do meio ambiente como um bem jurídico dotado de valor autônomo praticamente não existia.[i] Com o advento da Constituição Federal de 1988 o meio ambiente foi alçado a direito constitucional assegurado a todo cidadão (art. 225, CF) e, a partir daí, nasceu a chamada tríplice responsabilização – civil, administrativa e penal – por atos lesivos ao meio ambiente.[ii]

Do relevo constitucional que o Legislador decidiu conferir à proteção do meio-ambiente adveio a sua condição de bem jurídico penal, com previsão expressa de responsabilização criminal de pessoas físicas e jurídicas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, independentemente da responsabilidade administrativa e da obrigação de reparação de danos (art. 225, §3º, CF).[iii]

Para regulamentar referido dispositivo constitucional, sucedeu, uma década mais tarde, a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, no bojo da qual a responsabilidade penal por crimes ambientais foi definida. De acordo com o texto infraconstitucional “quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la” (art. 2º, da Lei n. 9.605/1998).

A legislação penal brasileira reconheceu, portanto, para além da responsabilidade penal comissiva daquele sujeito que, com determinada ação, contribui para o resultado delituoso, também a responsabilidade penal omissiva imprópria daquele gestor que, conhecedor da atividade criminosa, deixa de agir para impedir seu resultado, alçando diretores, administradores, membros de conselhos de administração, gerentes ou qualquer outro mandatário de empresas à condição de garante.[1]

Como em qualquer outro delito, também no âmbito dos crimes ambientais a responsabilidade penal de pessoas naturais deve ser pessoal e subjetiva, ou seja, o resultado lesivo deve apresentar claro nexo de causalidade com uma conduta – comissiva ou omissiva – de uma pessoa natural para que a incidência do direito penal se torne legítima.

Entretanto, crimes cometidos em grandes estruturas empresariais trazem o desafio da individualização de condutas e de atribuições e, consequentemente, da correta, legítima e proporcional responsabilização penal.[iv]

A marca da criminalidade empresarial é a divisão de tarefas de forma vertical, ou seja, a dissociação entre quem decide pela adoção da ação ou pela omissão tipificada como crime e quem de fato age no dia a dia da empresa, e a divisão de tarefas horizontal, ou seja, uma divisão muito clara de atribuições e responsabilidades entre diversas diretorias e departamentos.[v]

Dessa pulverização de funções em grandes corporações nasceu o risco da impunidade, ou seja, o risco de nenhuma pessoa física vir a ser responsabilizada por determinado fato lesivo ao meio ambiente porque a ação delitiva completa não está na esfera de atribuições individual de ninguém.

Para solucionar situações como essa, cada vez mais usuais em crimes ambientais cometidos no âmbito de grandes corporações, conceitos tradicionais do direito penal foram adaptados para aplicação à criminalidade empresarial.

De um lado, em relação aos crimes comissivos, é possível falar em responsabilidade penal dos administradores por autoria mediata em situações nas quais gestores usam de subordinados para a prática delituosa. Nesse caso, administradores podem ter consciência e intenção voltada à prática criminosa, mas usam de seus subordinados hierárquicos para efetivamente agir. Podem, nesse contexto, ser plenamente responsabilizados pelas ações de seus empregados se restar comprovado que estes agiram em cumprimento de ordens emanadas daqueles.

De outro lado, há os crimes omissivos impróprios, aqueles em relação aos quais o administrador se omite no momento de impedir o resultado. Para melhor compreender essa modalidade de responsabilização criminal faz-se necessário, antes, analisar a natureza dos delitos contra o meio ambiente.

O crime ambiental raramente é praticado com dolo direto, ou seja, raramente o autor do crime deseja deliberadamente gerar um dano ao meio ambiente. Normalmente, quando estamos lidando com responsabilização penal por crimes ambientais, estamos tratando de dolo indireto – situação na qual o agente deseja outro resultado, mas prevê e aceita que o resultado danoso ao meio ambiente ocorra – ou de culpa – situação na qual o sujeito ou prevê o resultado lesivo ao meio ambiente, mas espera poder evitá-lo (culpa consciente) ou sequer antevê que aquele determinado dano ao meio ambiente poderia ocorrer (culpa inconsciente).

O autor, ao menos no âmbito da atividade empresarial, age em nome e em benefício da empresa, e o resultado lesivo ao meio ambiente é como um subproduto indesejável do processo produtivo.[vi] Mas é desse conceito que nasce a condição de garante dos administradores de empresas e que, portanto, sua omissão em evitar o resultado lesivo ao meio ambiente passa a ser penalmente relevante.

Isso porque, na busca pelo resultado econômico desejado pela atividade empresarial, o empresário cria o risco da ocorrência do resultado lesivo ao meio ambiente e, por essa razão, passa a ter, por definição legal (art. 13, §2º, c, do Código Penal), o dever de agir para impedir esse resultado criminoso. É o que Heloísa Estellita chama de binômio liberdade-responsabilidade, ou seja, da liberdade de gerir a empresa de maneira a atingir o melhor resultado econômico advém a responsabilidade de garantir que da atividade empresarial não resulte riscos à coletividade.[vii]

É evidente, no entanto, que não é suficiente para a responsabilização penal que o administrador figure no contrato social da empresa, sob pena de incorrer-se em inadmissível responsabilização objetiva em matéria penal. Deve o administrador de fato exercer atividades de gestão daquela específica atividade que resultou no dano, ou seja, esse dever de agir para impedir o resultado tem que estar na esfera de atribuições da pessoa física – administrador, diretor, gerente – a ser responsabilizada.

Em pequenas empresas, contudo, a situação é outra e a responsabilização por omissão de sócios-administradores é muitas vezes direta, posto que, nestes casos, pressupõe-se que o gestor deve ter conhecimento das atribuições de todos os seus funcionários. Em empresas de pequeno porte aos sócios gestores é possível conhecer em profundidade as atribuições que são conferidas a cada um de seus funcionários e deve o administrador ter o cuidado de saber e fiscalizar como essas atividades são realizadas. Para o Superior Tribunal de Justiça, “não sendo o caso de grande pessoa jurídica, onde variados agentes poderiam praticar a conduta criminosa em favor da empresa, mas sim de pessoa jurídica de pequeno porte, onde as decisões são unificadas no gestor e vem o crime da pessoa jurídica em seu favor, pode então admitir-se o nexo causal entre o resultado da conduta constatado pela atividade da empresa e a responsabilidade pessoal e por culpa subjetiva de seu gestor.” (STJ, HC 71.109/PA, 6ª Turma, Rel. Min. Néfi Cordeiro, DJe 26/08/2016).

Mas em grandes corporações, vale repetir, a dificuldade de delimitação de atribuições e competências é grande e, não raras as vezes, as tarefas são tão pulverizadas e compartimentadas, que nenhuma pessoa física tem em sua esfera de atribuições elementos suficientes que viabilizem a configuração de uma conduta típica.

Nesses casos, para além da impunidade de sujeitos naturais, o sistema jurídico viu-se também diante da completa ineficácia da norma constitucional que permitiu a responsabilização criminal de pessoas jurídicas. Isso porque a legislação infraconstitucional limitou essa responsabilidade penal das empresas a casos nos quais a infração tenha sido cometida por decisão de seu representante legal e em seu benefício.

Nesse cenário, a jurisprudência nacional historicamente compreendeu que os crimes ambientais empresariais são pluri-subjetivos e de concurso necessário, ou seja, se não é possível individualizar condutas dentro de grandes corporações a fim de responsabilizar criminalmente pessoas físicas, não seria também possível punir isoladamente as pessoas jurídicas, cuja responsabilização penal estava condicionada e limitada à concomitante responsabilização criminal de pessoa física que teria agido em benefício da entidade. Era o que a doutrina passou a chamar de Teoria da Dupla Imputação, acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça até 2013.

Foi apenas com o julgamento paradigmático do Recurso Extraordinário n. 548.181/PA, do Supremo Tribunal Federal, que a responsabilidade penal isolada da pessoa jurídica passou a ser admitida nos casos em que, dada a complexidade da estrutura empresarial, é impossível identificar as pessoas naturais a quem se poderia atribuir um ato criminoso, [viii] o que se convencionou chamar de Teoria da Atribuição. Para a Ministra Rosa Weber, Relatora do recurso responsável pela mudança de entendimento jurisprudencial, “as organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta” (STF, RE 548.181/PR, Rel(a). Min(a). Rosa Weber, 1ª Turma, j. 06/08/2013, DJe 29/10/2014). Ainda assim, é possível identificar condutas “para esclarecer se indivíduos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou benefício da entidade coletiva” (STF, RE 548.181/PR, Rel(a). Min(a). Rosa Weber, 1ª Turma, j. 06/08/2013, DJe 29/10/2014), de modo a viabilizar ao menos a responsabilização penal da pessoa jurídica.

Em que pese a alteração da orientação jurisprudencial da Suprema Corte, admitida pelo Superior Tribunal de Justiça [2], e que surgiu como uma tentativa de reduzir a impunidade de crime ambientais cometidos no âmbito de corporações de estruturas empresariais complexas, a verdade é que a dificuldade enfrentada pelo sistema jurídico para impor reprimendas penais nesses casos, sem ferir princípios básicos do direito penal, aponta para a conclusão de que sanções administrativas são muito mais eficientes e efetivas para regular relações complexas da vida empresarial do que o uso indiscriminado do direito penal.

 

Bibliografia

[1] Para o Código Penal brasileiro a figura do garante é aquele a quem incumbe o dever de agir para impedir o resultado delituoso: “Art. 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (…) §2 – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

[2] STJ: AgRg no RMS n. 48.851, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 20.02.18; AgRg no HC 393.284/PI, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, j. 09/05/2017; RHC n. 88.264, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 08.02.18; AgRg no RMS n. 48.085 , Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 05.11.15; RMS n. 39.173, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 06.08.15.

[i] Da Cruz, Ana Paula Fernandes Nogueira. Crimes Ambientais. Comentários à Lei 9.605/98. Ana Maria Moreira Marchesan e Annelise Monteiro Steigleder (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 27.
[ii] Marchesan, Ana Maria Moreira e Capelli, Silvia. Crimes Ambientais. Comentários `s Lei 9.605/98. Ana Maria Moreira Marchesan e Annelise Monteiro Steigleder (org.). Portol Alegre: Livraia do Advogado Editora, 2013, p. 23.
[iii] Azevedo, Carlos Henrique Almeida José. A responsabilidade penal isolada das pessoas jurídicas em crimes ambientais. Revista dos Tribunais. Revista do Direito Ambiental, vol. 95/2019, pp. 77-104, jul-set. 2019.
[iv] Estellita, Heloísa. Quando o crime se oculta na empresa, Folha de São Paulo, 01/11/2015.
[v] idem, ibidem.
[vi] Da Cruz, Ana Paula Fernandes Nogueira. Crimes Ambientais. Comentários `s Lei 9.605/98. Ana Maria Moreira Marchesan e Annelise Monteiro Steigleder (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 27.
[vii] Estellita, Heloísa. Responsabilidad por omisión de los membros de consejos de administración. Derecho Penal, a`no IV, número 7, pp. 78-79.
[viii]  Azevedo, Carlos Henrique Almeida José. A responsabilidade penal isolada das pessoas jurídicas em crimes ambientais. Revista dos Tribunais. Revista do Direito Ambiental, vol. 95/2019, pp. 77-104, jul-set. 2019.

 


Autora: Isadora Fingermann

Sócia de Direito Penal Econômico

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