Este capítulo tem por escopo oferecer ao empresário que pretende investir no setor da moda no Brasil, um breve panorama acerca do Direito da Moda, que a cada ano vem ganhando maior expressividade.
Neste capítulo serão feitos apontamentos sobre as formas de proteção dos artigos de moda, bem como serão indicados ao leitor alguns dos principais contratos e cláusulas que permeiam o universo fashion, ressaltando-se que se trata de um mercado complexo e repleto de minúcias e que a intenção aqui não é propriamente esgotarmos o tema, mas darmos uma visão sobre os aspectos que nos parecem mais relevantes.
A indústria da moda possui importância socioeconômica para diversos países, tornando-se cada vez mais representativa globalmente. Além de movimentar expressivos valores e abarcar diversos segmentos, tais como o setor têxtil, calçadista, de acessórios, de luxo, de joias, cosméticos, beleza e outros, a indústria da moda gera milhões de empregos ao redor do mundo.
A Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecções (ABIT) aponta que o setor têxtil é o segundo maior empregador da nossa indústria de transformação, ficando atrás apenas da indústria de alimentos. A cada ano esse mercado tem sido responsável pelo aumento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, alçando o Brasil ao ranking de 6º maior produtor têxtil do mundo, representando 3,5% do nosso PIB total1.
Outro fato importante que fomentou o crescimento e a integração vertical da indústria da moda foi a liberação do comércio internacional de têxteis e de vestuário, que contribuiu para o desenvolvimento de novos modelos de negócio como, por exemplo, o e-commerce e suas variações, a cada dia mais presentes na jornada do consumidor, notadamente a partir de 2020, em decorrência do estado de pandemia e do isolamento social decretados em virtude da Covid-19.
Um dado interessante é que o Brasil é um dos poucos países que possui uma cadeia têxtil completa e complexa. Ou seja, além de produzirmos fibras naturais (como algodão, linho, lã e seda) e químicas (como viscose, modal, elastano e poliéster), também confeccionamos o vestuário, passando desde o processo de fiação, tecelagem, malharia e beneficiamento, até chegarmos ao consumidor final.
Oportuno dizer que, em 2019, o Brasil respondia por 2,4% da produção mundial de têxteis e por 2,6% da produção mundial de vestuário. Os dados conferem ao Brasil o posto de único país da América do Sul com destaque no setor têxtil2. Ainda, de acordo com os dados gerais do setor, em 2022 o faturamento da nossa cadeia têxtil e de confecção foi de R$ 193 bilhões, o que corresponde a uma produção média de têxteis de 2,1 milhões de toneladas3.
Além disso, o País é o quarto maior produtor de malhas do mundo e está entre os cinco maiores produtores e consumidores globais de denim, sendo igualmente referência mundial em design de beachwear, jeanswear e homewear, tendo crescido também nos segmentos de fitness e lingerie4.
1FONSECA, Ana Flávia da. Por que o mercado de design de moda é promissor no Brasil? UNIPE – Centro Universitário de João Pessoa, 09 set. 2015. Disponível em: <http://blog.unipe.br/graduacao/design-de-moda-no-brasil-mercado-promissor>. Acesso em: 08 nov. 2017.
2FEBRATEX. Cadeia têxtil: entenda as oportunidades deste segmento de acordo com a ABIT. Disponível em: <https://fcem.com.br/noticias/cadeia-textil-entenda-as-oportunidades-deste-segmento-de-acordo-com-a-abit/>. Acesso em: 09.nov.2019.
3Dados gerais do setor referentes a 2022 – atualizados em janeiro de 2024 pela ABIT. Disponível em: < https://www.abit.org.br/cont/perfil-do-setor >. Acesso em: 31.jul.2024.
4Idem.
A indústria da moda gera milhares de empregos anualmente. Em 2023, proporcionou 1,33 milhão de postos formais e 8 milhões de empregos indiretos, dos quais 60% foram de mão de obra feminina. Segundo os dados do IEMI – Inteligência de Mercado, em 2023 o número de empresa do setor era de 24,3 mil unidades produtivas formais5.
Todavia, se de um lado há motivos para comemorar em razão da crescente representatividade desse mercado, de outro trata-se de uma indústria ainda muito sujeita à informalidade. Portanto, apesar da imagem de glamour, possui também um lado bastante obscuro e que exige a máxima atenção, tanto do empresário que está à frente do negócio, como do advogado que deve estar preparado para lidar com as diversas e complexas questões jurídicas que o envolvem.
A relação entre direito e moda teve seus primórdios no ano de 2000, na França e na Itália6. Entretanto, a discussão inicial sobre a necessidade de um olhar mais aguçado e crítico por parte da comunidade jurídica para o universo da moda teve início nos EUA, com a professora Susan Scafidi. Sua primeira iniciativa relacionada ao universo da moda e do direito foi em 2005, com a criação do blog denominado Counterfeit Chic7.
Posteriormente, com o propósito de estudar e debater as questões que envolviam essa indústria e, sobretudo, com a intenção de alterar a legislação dos Estados Unidos de forma a conferir proteção às criações de moda (visto que naquele país os designs têxteis e de vestuário são considerados utilitários, e como tal, não são passíveis de proteção nem pelo copyright, nem pelo regime de proteção industrial), a professora norte-americana, além de criar uma disciplina na Fordham University (NY) denominando-a Fashion Law ou Direito da Moda, fundou o Fashion Law Institute8, organização sem fins lucrativos com sede na Fordham University, primeiro centro do mundo dedicado ao direito e aos negócios da moda.
Atualmente, diversos países e instituições de ensino se dedicam a apoiar e obter os melhores resultados para as empresas desse setor, com o fim de tratar questões sensíveis a ele. No Brasil, a indústria da moda tem quase 200 anos e, segundo reportagem da Folha de São Paulo, em 2019 o País contava com mais de 50 faculdades de moda distribuídas em 11 estados brasileiros.
Por aqui, os estudos sobre direito e moda tiveram início entre os anos de 2011 e 2012. Em 2012, foi fundado o primeiro Instituto Brasileiro de Negócios e Direito da Moda – Fashion Business Law Institute (FBLI)9. Anos mais tarde, em 2017, foi criada a primeira pós-graduação brasileira em Fashion Law, na Faculdade Santa Marcelina, sendo reconhecida internacionalmente como uma das melhores faculdades dedicadas ao ensino dessa matéria. Nesse sentido, ressalta-se que diversas subseções da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) criaram comissões de estudo para discutir o tema. Em 2019, o renomado Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) criou uma comissão de estudos de Fashion Law, com o objetivo de promover cursos, seminários e pareceres envolvendo questões jurídicas do segmento.
O Brasil, a exemplo de outros países, não possui uma lei específica que trate exclusivamente sobre o direito da moda. Nesse ponto, aliás, há muitas questões que circundam o tema. Indaga-se, por exemplo, se o Fashion Law não deveria ser uma disciplina autônoma do direito em razão, dentre outros, da complexidade e pujança econômica do setor.
Todavia, ainda que o direito brasileiro não ostente proteção expressa para os artefatos de moda (como é o caso da França, que tutela essas criações já em seu Código de Propriedade Intelectual), as criações do mundo da moda são sim protegidas no sistema jurídico brasileiro por duas legislações básicas, a depender do objeto que se pretenda amparar: (i) a Lei Federal nº 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial; e/ou (ii) a Lei Federal nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que disciplina os direitos autorais e conexos.
5https://www.abit.org.br/cont/perfil-do-setor
6SOUZA, Regina Cirino Alves Ferreira de. Aspectos Jurídicos do Fashion Law. Jornal Carta Forense, 02 mai. 2018. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/entrevistas/aspectos-juridicos-do-fashion-law/18184>. Acesso em: 26 jun. 2020.
7http://intro.counterfeitchic.com/
8https://fashionlawinstitute.com/about
9https://www.linkedin.com/company/fashion-business-and-law-institute
Por exemplo, para ter exclusividade sobre o sinal distintivo que identifica o seu serviço ou produto, é recomendado ao empresário registrá-lo como marca a fim de gozar de proteção legal e assim impedir que terceiros façam uso indevido dele. E não é apenas isso. Como se sabe, uma marca registrada pode vir a se tornar um dos maiores ativos de uma empresa, uma vez que agrega valor aos seus produtos e serviços e transmite credibilidade ao mercado e ao público consumidor, indicando procedência e qualidade e proporcionando à empresa vantagem competitiva em relação à sua concorrência. Além disso, o registro da marca possibilita que os consumidores diferenciem produtos ou serviços semelhantes, confere direitos de propriedade exclusivos ao titular e possibilita que este a licencie a terceiros ou mesmo expanda o seu negócio por meio de uma rede de franquia, gerando assim relevantes receitas adicionais.
Desse modo, para proteger a marca de sua empresa de moda no Brasil, o empresário deverá depositá-la no Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI (semelhante, por exemplo, ao Escritório de Marcas e Patentes dos EUA – USPTO) e aguardar o trâmite de deferimento ou indeferimento, a depender do caso. Se a marca for concedida, o registro vigorará por um prazo de 10 anos contados da data da concessão, sendo prorrogável por períodos iguais e sucessivos, desde que haja o pagamento da respectiva taxa decenal. Atualmente, o processo de registro de uma marca dura em média 2 anos.
Com o passar do tempo, além da necessidade de conferir proteção às criações dos designers, verificou-se a necessidade de o Direito dedicar atenção a outras questões decorrentes dessa indústria: (i) problemas ambientais, tais como o descarte incorreto de resíduos têxteis; (ii) problemas trabalhistas relacionados à exploração indevida das relações laborais muitas vezes, lamentavelmente, até em condições análogas à escravidão; (iii) questões tributárias, haja vista a elevada carga tributária vigente no Brasil; (iv) problemas penais decorrentes das práticas de plágio e contrafação, dentre outros crimes; (v) questões contratuais, em consequência da pluralidade de instrumentos envolvidos e, portanto, a necessidade de análise de todo o conjunto obrigacional em que os diversos temas relativos às criações da moda se inserem, além de questões consumeristas e de propaganda e marketing, dentre outras.
Nesse contexto, podemos dizer que o Direito da Moda é inter e multidisciplinar, o que vale dizer que ele “flerta” e acaba por envolver os mais diversos ramos jurídicos do direito: propriedade intelectual e industrial, direito societário, direito internacional, direito trabalhista, direito tributário, direito ambiental, direito criminal, direito digital, direito concorrencial e contratual.
No que tange especificamente ao direito contratual, os contratos constituem um elemento fundamental no segmento da moda, pois, como foi mencionado acima, num mercado cercado pela informalidade e, muitas vezes, sem um plano de negócios clara e objetivamente definido, um contrato bem estruturado e em harmonia com os demais contratos envolvidos no mesmo negócio, é imprescindível para mitigar riscos e evitar conflitos futuros.
Dentre a vasta gama de contratos já consolidados nas operações envolvendo o direito da moda, bem como daqueles se desenham a cada dia em função das novas relações que surgem nessa dinâmica indústria, podemos destacar os seguintes:
- Contratos de Prestação de Serviços com Personal Stylists, de Consultoria de Moda, com designers, com digital influencers, com modelos, com fotógrafos etc.;
- Contratos de Fabricação por Encomenda ou Facção;
- Contratos de Intermediação ou Representação Comercial;
- Contratos de Patrocínio;
- Termos de Confidencialidade;
- Contratos de Licença de Uso de Imagem;
- Contratos de Importação e Exportação de Mercadorias;
- Contratos de Operações Societárias (Fusões e Aquisições);
- Contratos de Locação de Espaço para Eventos, tais como desfiles;
- Contratos de Aluguel em shopping centers;
- Contratos de Transferência de Tecnologia;
- Contratos de Licença e Cessão de Marcas, Patentes e Desenho Industrial;
- Contratos de Franquia etc.
Cada um desses tipos contratuais possui suas especificidades, porém, no geral, os principais elementos que devem constar da elaboração de uma minuta contratual na área da moda são: (a) as partes; (b) os considerandos que contextualizam o negócio; (c) o objeto da contratação; (d) as diversas obrigações de cada uma das partes; (e) as condições de remuneração; (f) eventuais limitações de territorialidade, exclusividade e direitos de preferência; (g) disposições relativas à titularidade da propriedade intelectual; (h) penalidades pelo descumprimento das condições acordadas ou pelo seu cumprimento de forma diversa da pactuada; (i) formas de extinção do contrato e causas de rescisão contratual; (j) obrigações de confidencialidade; (k) conduta anticorrupção – compliance; (l) responsabilidade social (aplicação de normas relativas a sustentabilidade ambiental, e de responsabilidade social); (m) cláusulas relativas a situações excepcionais como, por exemplo, a de hardship no caso de contratos internacionais; (n) forma de resolução de controvérsias – eleição de foro judicial ou câmara arbitral; e (o) legislação aplicável nos casos que envolvam partes estabelecidas em países diferentes.
Tanto o rol dos contratos citados acima, quanto o das cláusulas mencionadas, não são taxativos. Cada negociação deve ser muito bem pensada e planejada, e fazer uso dos instrumentos adequados, com cláusulas redigidas de forma clara e inter-relacionadas, de maneira a contemplar todas as peculiaridades e necessidades do negócio, traduzindo de maneira fiel a real intenção das partes contratantes.
Nesse cenário, vale ressaltar que um dos modelos de negócio que cresce a cada ano é o sistema de franquia. Podemos dizer que o Brasil é um mercado maduro em matéria de franquias, principalmente na área da moda. A Lei Federal nº 13.966, de 26 de dezembro de 2019, que regula o sistema de franquia empresarial, privilegia o princípio da transparência, proporcionando assim maior atrativo aos investidores e empreendedores interessados nessa modalidade. Assim, muitos empresários do ramo da moda que buscam expandir suas operações, seja em território brasileiro ou no exterior, optam pelo sistema de franchising, cuja atratividade reside em grande parte no fato de ser um negócio servido ao franqueado como um produto “prét-à-porter” que dispensa preocupações com desenvolvimento e formatação para o início das atividades, potencializando assim as chances de sucesso do empreendimento.
Segundo os dados da Associação Brasileira de Franchising (ABF), o faturamento do setor referente ao quarto trimestre do ano de 2023 apresentou um crescimento de 14,2% quando comparado ao mesmo período de 2022. Isso significa dizer que os números retratam que o setor, além de se recuperar do período afetado pela pandemia, também demonstra claramente sinais de crescimento. As projeções para o ano de 2024 são de um crescimento de 10% no faturamento, de 5% das redes existentes e aproximadamente 5,5% no número de empregos ofertados10.
Ressalta-se que, das 50 maiores redes de franquias do País (em número de marcas), 16% são voltadas à moda, ao vestuário e ao segmento da saúde, beleza e bem-estar11, sendo que os modelos de menor investimento vêm crescendo em uma velocidade vertiginosa, com destaque para as operações virtuais e home-based12. Já em relação a marcas estrangeiras com atuação no Brasil em 2020, o último dado disponibilizado pela ABF totalizava 205 marcas de 30 países, sendo que saúde, beleza e bem-estar ocupavam o 2º lugar e moda o 3º lugar, com 28 marcas.
Também foi destaque na pesquisa de desempenho o número de novas operações, que atingiram um crescimento de 17,3% em 2023, contra 14,9% em 2022. Seguindo essa linha, o franchising bateu recorde de postos de trabalho, sendo que cada operação de franquia gerou, em média, 9 empregos diretos, o que levou ao número de 1.701.726 novos empregos no País.
Nota-se, portanto, ser essencial, tanto ao empresário quanto ao profissional do direito, que estejam à frente dessa indústria, conhecerem adequadamente as demandas e a realidade das empresas de moda, de sorte que possam sempre buscar traçar a melhor estratégia, a fim de se preservar a reputação das marcas e mitigar os problemas, riscos e potenciais contingências peculiares a esse mercado.
10https://www.abf.com.br/wp-content/uploads/2024/02/Apresentacao_Desempenho_Franchising_2023_Final.pdf
11https://www.abf.com.br/wp-content/uploads/2024/02/Apresentacao_Desempenho_Franchising_2023_Final.pdf
12https://www.abf.com.br/estudo-abf-retrata-50-maiores/
Autora: Daniela Favaretto, sócia da área de Fashion Law, com ênfase em contratos, e Nathalie Ciriadès Chiarottino, sócia-fundadora, especializada em contratos, de Chiarottino e Nicoletti Advogados.
Chiarottino e Nicoletti Advogados
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