O Laboratório de Leitura: uma experiência estético-reflexiva que humaniza

30/jul/2020 - Associados, Cultura e social -


Sir John Gilbert’s 1849 painting: The Plays of William Shakespeare, containing scenes and characters from several of William Shakespeare’s plays.

 

Por Alexandre Seraphim e Dante Gallian

Este artigo é a Parte III do artigo original “Literatura e Responsabilidade Humanística: Empresas Responsáveis e Humanas do Século XXI”.*

O Laboratório de Leitura surgiu numa escola de medicina, como resultado de um esforço por humanizar a formação dos futuros profissionais da saúde e, de forma experimental (laboratorial, poderíamos dizer), se estruturou a partir da constatação empírica do poder despertador, reflexivo e mobilizador que a literatura (especialmente a literatura clássica) possui. Uma descrição detalhada de sua fundamentação teórica e dinâmica metodológica foi objeto de dezenas de artigos científicos publicados em revistas internacionais e em boa medida sintetizadas na obra, A Literatura como Remédio: os clássicos e a saúde da alma. Para os objetivos deste artigo, faremos uma descrição sumária da dinâmica do LabLei, tal como ela vem sendo desenvolvida no âmbito das empresas.  Fundamentada na constatação de que o processo de humanização só pode se realizar eficazmente quando as três dimensões da experiência humana são mobilizadas — a do afeto, da inteligência e da vontade — a metodologia do LabLei estrutura-se consequentemente em três etapas: Histórias de Leitura, Itinerário de Discussão e Histórias de Convivência.

Antes, porém, de ter início o ciclo de encontros de 90 minutos que caracteriza o LabLei, há uma importante fase de construção da proposta que, no âmbito corporativo, geralmente é delineada a partir das demandas e expectativas das lideranças da empresa, com a atuação predominante dos gestores de pessoas ou de recursos humanos. E a partir desse briefing é apresentada uma proposta de livro ou livros a serem lidos e trabalhados. Assim, neste contexto, a humanização nunca é trabalhada de forma genérica e independente, mas, em certa medida, customizada, em função das necessidades ou interesses da gestão de cada empresa em cada momento concreto. Desta forma, se a demanda for relacionada, por exemplo, ao desenvolvimento de valores necessários a uma liderança mais inspiradora e humanizada, certos livros, como O Conto da Ilha Desconhecida de José Saramago, apresentam-se como especialmente indicados. Se, por outro lado, a solicitação for no sentido de levar a uma reflexão sobre a temática referente à tomada de decisão, o livro poderia ser Hamlet, de Shakespeare. Ou, se o interesse for no sentido de gerar uma ponderação sobre o equilíbrio entre vida corporativa e vida familiar, passando pelo tema propósito pessoal e o autoconhecimento, o livro deve ser, com certeza, A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói.

A decisão por utilizar a literatura clássica neste contexto não é arbitrária, nem fruto de qualquer dogma acadêmico. Assim como a própria existência do LabLei e a estrutura de sua metodologia, a preferência pelos clássicos surgiu como resultado da experiência empírica, laboratorial. A princípio, quando nasceu o LabLei, na Escola Paulista de Medicina, os livros eram sugeridos pelos próprios alunos, de acordo com seus próprios interesses. Assim, foram muitos os livros de literatura contemporânea, crônicas e best sellers que nortearam as discussões dos primeiros anos do Laboratório. Entretanto, logo percebemos que quando o livro proposto era um clássico, a amplitude e a profundidade das discussões eram significativamente maiores. Não demorou muito para percebermos então por que os clássicos são clássicos. Tomando a metáfora da literatura como remédio, podemos afirmar, com toda segurança, que os clássicos, dentre toda a “farmacopeia literária”, apresentam um “princípio ativo” mais poderoso. Justamente por se constituírem em expressões incomparáveis dos dramas essenciais da existência humana, os clássicos, sem deixar de trazer as marcas e as especificidades de seu próprio tempo, língua, cultura, apresentam uma validade ao mesmo tempo perene e universal. São essas as obras que nos permitem chegar mais fundo naquilo que é próprio do humano, independente da época e do lugar, porque são elas, no contexto do patrimônio literário da humanidade, as traduções mais felizes do que é ser humano. Tais observações, comuns nas obras de críticos e especialistas em literatura tais como Ítalo Calvino e Harold Bloom[1] pôde ser vivenciada e constatada ao longo de mais de 15 anos de experiência com o Laboratório de Leitura. E, efetivamente, a opção preferencial pelos clássicos, além de se tornar uma espécie de marca registrada do LabLei, acaba por agregar aspectos muito peculiares quando essa atividade é realizada no ambiente corporativo.

Uma vez definido o livro, de acordo com as especificidades de cada organização, é feita uma apresentação sobre a dinâmica do Laboratório de Leitura, seus objetivos e metodologia, e definido um prazo para a leitura individual dos participantes. A partir daí inicia-se o processo e no primeiro encontro, seguindo os princípios antropológicos e os objetivos humanizadores do LabLei, os participantes são convidados a fazerem suas Histórias de Leitura: o compartilhamento dos sentimentos, afetos, impressões que a experiência de leitura suscitou. Neste momento, o coordenador do LabLei adverte que as Histórias de Leitura estão muito longe de ser uma “análise crítica” da obra, um resumo, ou uma ponderação acadêmica, do tipo que se aprende na escola ou na universidade, onde o que interessa são as características técnicas e estilísticas da obra e não os sentimentos e afetos que ela suscitou no leitor. Os participantes são convidados a falarem com franqueza e a expressarem suas impressões efetivamente subjetivas, pessoais, portanto, todo o contrário daquilo que em geral lhes foi ensinado e cobrado durante sua vida escolar. Tal abordagem permite que a fundamentação da atividade, seja efetivamente a experiência dos afetos, suscitado pela interpelação estética que a obra proporciona. Com as Histórias de Leitura permite-se que emerjam os sentimentos, base significativa de qualquer processo humanizador, assim como os grandes temas, perguntas e questões que serão, na fase seguinte, exploradas e trabalhadas, determinando a cooperação da reflexão junto à experiência afetiva.

Esta segunda fase, que corresponde aos encontros intermediários, que podem variar de acordo com o tamanho do livro trabalhado, é denominada de Itinerário de Discussão, onde, sem menosprezar a carga afetiva, privilegia-se o trabalho da inteligência, da reflexão coletiva, que permite não apenas a experiência da releitura, como também de inusitadas e mobilizadoras descobertas a respeito do humano e, obviamente, de si próprio. Nesta segunda fase da metodologia, o coordenador da atividade propõe uma divisão da obra em partes ou capítulos, que devem ser relidos e depois discutidos em cada encontro respectivo, gerando uma oportunidade de aprofundamento reflexivo pouco comum no ambiente corporativo e na vida moderna como um todo. São muitas as surpresas e descobertas não só em relação à obra em si, seus personagens e situações, como também em relação aos próprios participantes, em geral colegas de trabalho, assim como em relação ao autoconhecimento de cada um. Como núcleo da metodologia do LabLei, o Itinerário de Discussão constitui-se num elemento de primeira importância no processo humanizador proposto pela atividade.

Finalmente, a terceira e última etapa da metodologia privilegia a dimensão volitiva do processo humanizador. Iniciado com o despertar afetivo suscitado pela experiência estética com a leitura dos clássicos e desenvolvido a partir da reflexão intelectual e crítica coordenada e coletiva, ao término do ciclo cabe avaliar em que medida todo esse processo estético-reflexivo impacta na visão de mundo, do outro e de si mesmo de cada participante. Por isso, nesta derradeira etapa, denominada Histórias de Convivência, é possível identificar o que significou, para cada indivíduo, o ter participado da experiência do Laboratório de Leitura: o que ficou de mais importante; o que mudou em sua forma de ver, de pensar a respeito dos temas e questões que foram discutidos e como isso impacta no comportamento e nas atitudes de cada um. Fechando o ciclo humanizador, as Histórias de Convivência privilegiam, portanto, a dimensão volitiva da experiência humana e permitem expressar e conscientizar as possíveis transformações que se operaram e que ainda se quer operar como consequência de toda a mobilização que o LabLei proporciona.

Com base na análise de casos bem-sucedidos da aplicação do Laboratório de Leitura em mais de uma dezena de empresas[2], podemos identificar através das narrativas dos participantes os seguintes efeitos transformadores: ampliação de repertório; autoconhecimento e transformação pessoal e conhecimento do outro; desenvolvimento da empatia e fortalecimento de vínculos; promoção da saúde e dimensão terapêutica; impacto disruptivo do inusitado.

Com base nesse vasto material já podemos concluir que, a simples proposição da leitura de clássicos da literatura no contexto do ambiente corporativo determina uma experiência inusitada, disruptiva e que surpreende. Abre novos horizontes, apresenta novas possibilidades de visão de mundo e amplia o repertório estético e cultural dos colaboradores. E, neste sentido, um dos efeitos mais interessantes que temos podido observar é, em meio a tantos outros, a elevação da autoestima.

Além disso, concluímos que o LabLei contribui efetivamente para a composição de equipes de trabalho coesas, bem sintonizadas e eficazes, que é um dos mais importantes desafios da gestão corporativa. Num contexto de crescente complexidade e amplitude, o trabalho em rede, colaborativo, exige que as expertises e habilidades individuais estejam orquestradas de forma sinergética, privilegiando os objetivos comuns, corporativos, mais do que os pessoais. Por outro lado, este mesmo contexto, marcado pela concorrência e competitividade, fomenta, paradoxalmente, o individualismo e o personalismo. Conciliar estas duas forças, imprescindíveis para o sucesso empresarial, demanda conhecimentos e habilidades muito especiais por parte do líder-gestor, que transcendem aquelas de caráter meramente técnico e instrumental. A experiência do LabLei sem dúvida estimula a empatia e a construção de vínculos entre as pessoas. Da mesma forma favorece o engajamento a partir do sentimento de gratidão que sempre se manifesta no final de cada ciclo. Vejamos agora então como essa proposta de Humanização pode ser institucionalizada nas empresas Responsáveis e Conscientes[3] do seu papel na sociedade.

Alexandre Seraphim é CEO da Ferring Brasil.
Dante Gallian é Professor e Fundador da Responsabilidade Humanística®️.


[1] CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo, Cia das Letras, 1991; BLOOM, Harold. Onde encontrar a Sabedoria. São Paulo, Objetiva, 2005.
[2] Dentre essas empresas destacam-se: Natura, HCor, C&A, CIEE, Bradesco, Banco do Brasil, BB&Mapfre, Sicredi, Capgemini, Laboratórios Ferring Brasil, Porto Seguro Seguradora, Banco Santander, onde ocorreu mais de um ciclo. Em algumas delas programas de mais de um ano foram e estão sendo realizados.
[3] Refere-se ao conceito de consciência corporativa.

* Acompanhe a newsletter da SWISSCAM para receber as próximas partes de continuação deste artigo, que é uma adaptação do livro que será publicado no último trimestre de 2020 intitulado “Responsabilidade Humanística: um caminho de humanização e saúde para o mundo corporativo”.