Modernidade e Desumanização

04/jun/2020 - Associados, Cultura e social -

Por Alexandre Seraphim e Dante Gallian

Este artigo é a Parte I do artigo original “Literatura e Responsabilidade Humanística: Empresas Responsáveis e Humanas do Século XXI”.*

A imagem que todos conhecemos de Carlitos brincando com as engrenagens de uma enorme máquina no filme “Tempos Modernos”, no limite de ser esmagado por elas, genialmente captura de forma muito divertida a triste face desumanizadora da Modernidade na produção em larga escala. A racionalização excessiva do trabalho através de tarefas padronizadas, repetitivas, e desprovidas de sentido, que reduzem o Ser Humano a mais um fator de produção e que como tal deve ser continuamente otimizado é desumanizadora em sua essência, pois desconsidera a condição natural do Homem como um ser que pensa, sente, cria e age no mundo conforme a sua vontade.

Essa cientificização e tecnificação não só se restringe às tarefas laborais, mas vai muito mais além atingindo a vida como um todo. De forma ainda mais grave e preocupante atinge as relações humanas, a nossa capacidade de empatizar, comunicar e se emocionar, no trabalho e fora dele. Estas são as engrenagens da Modernidade que seguem operando cada vez mais velozes no século XXI, aceleradas pela globalização e tecnologia, abrangendo não só a produção industrial, mas todos os setores da atividade humana de escritórios a hospitais, e alcançando todos os níveis das organizações de funções operacionais a gerenciais.

Taylorismo digital é um termo que começa a ser empregado para descrever essa situação e significa a aliança entre os métodos de otimização do trabalho com a tecnologia na busca incessante do aumento da produtividade. Os computadores, smartphones e a internet, diluem os limites de tempo e espaço de trabalho, e o rápido desenvolvimento da inteligência artificial pode levar a racionalização ainda mais longe, alcançando a produção de conhecimento. Por essa perspectiva, estamos mais próximos do que gostaríamos de admitir das fábricas da Revolução Industrial do século XVIII -XIX quando a Modernidade se estabeleceu como matriz filosófica baseada na crença da prevalência do Homem sobre a natureza, e na primazia da ciência e a tecnologia como fonte de conhecimento.

Dessa forma, a desumanização não é um problema novo, mas se potencializa justamente no momento de maior progresso científico e tecnológico da Humanidade. A combinação da racionalização, globalização, e tecnologia digital, cria um cenário de transformação constante e inevitável que requer da sociedade a busca por alternativas para mitigar os efeitos da desumanização que se aprofunda como consequência desse processo. Os problemas de saúde mental e sofrimento psíquico talvez sejam a face mais visível e preocupante da desumanização. Os sinais de que algo não vai bem são contundentes e mostram como muitas das conquistas obtidas com o progresso material sem precedentes gerado pela Modernidade podem ser anuladas. Esse crescimento das psicopatologias é um fenômeno global e causa grande preocupação mesmo em países que alcançaram os maiores níveis de desenvolvimento ambiental, econômico e social da Europa e da América do Norte[1].

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a depressão será a doença mais comum em 2030, e será aquela que mais gerará custos econômicos e sociais para os governos devido aos gastos com tratamentos e à perda de produção[2]. Podemos perceber esta situação na nossa vida cotidiana, pois não é raro encontrar ao nosso redor quem ateste já haver experimentado, ou esteja experimentando, sintomas de exaustão física e emocional, depressão, ansiedade, insônia, dentre outras psicopatologias. Parte deste fenômeno está ligado ao trabalho conforme reconhecido recentemente pela OMS, e é identificado como síndrome de Burnout. Múltiplos fatores podem ser associados ao Burnout: a pressão ilimitada por resultados, desmotivação, solidão, e ausência de propósito. Imersos em uma cultura de produção e consumo, que privilegia o sucesso profissional, prosperidade material, e seduzidos pelas facilidades da tecnologia, nem sempre conseguimos discernir com clareza o alcance e as consequências desse grande problema.

As empresas estão no centro dessa discussão pois não só experimentam em suas próprias organizações esses efeitos, como também guardam em si um enorme potencial transformador dessa realidade. Ao longo da história as empresas demonstraram esse potencial reagindo aos desafios da Modernidade independentemente da iniciativa dos Estados. Aliás é praticamente um consenso que o Estado não é capaz de lidar sozinho com esse problema. Desde a filantropia do século XVIII, passando pela Responsabilidade Socioambiental do século XX, até a atual reflexão em torno do senso de propósito, as empresas evoluíram para muito além do seu papel como agentes econômicos para se tornarem também decisivos agentes sociais e políticos. Da mesma forma, do ponto de vista do negócio, as empresas podem se beneficiar muito da ampliação de suas Responsabilidades.

A desumanização compromete a capacidade do Homem em se sensibilizar, analisar criticamente o seu entorno, empatizar com o próximo, e elaborar soluções originais para novos problemas, que são habilidades tão necessárias especialmente em momentos de crise como estamos passando agora. Além disso, pode comprometer a continuidade dos avanços na esfera socioambiental conquistados com tanto empenho, valendo lembrar o quanto ainda estamos longe de atingir a Sustentabilidade. Por isso, precisamos fazer uma autocritica construtiva pois muitas empresas que exibem nas suas declarações de Missão, Visão e Valores, compromissos alinhados com a Responsabilidade Social Corporativa e a Sustentabilidade, foram causadoras de diversas tragédias ambientais e sociais de grandes proporções nas últimas décadas. Empresas podem ser social e ambientalmente atuantes, e mesmo assim profundamente desumanas, porém o contrário é bem menos provável. A formação de lideranças verdadeiramente humanizadas é chave desse processo.  Mas como fazer isso?

As Humanidades, entendidas como o conjunto das artes, literatura e filosofia, promovem a reflexão e despertam nossas emoções, e por isso são as grandes aliadas desse projeto. Mas para entender isso precisamos resgatar o significado do que se entende por humanização e aprender com experiências já bem-sucedidas.

Alexandre Seraphim é CEO da Ferring Brasil.
Dante Gallian é Professor e Fundador da Responsabilidade Humanística®️.


[1] Christophe Dejours, Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho, Rio de Janeiro, editora Fiocruz, 2011.
[2] “Depressão será a doença mais comum do mundo em 2030, diz OMS”, BBC News Brasil, 2 de setembro de 2019

* Acompanhe a newsletter da SWISSCAM para receber as próximas partes de continuação deste artigo, que é uma adaptação do livro que será publicado no último trimestre de 2020 entitulado “Responsabilidade Humanística: um caminho de humanização e saúde para o mundo corporativo”.