Por Alexandre Seraphim e Dante Gallian
Este artigo é a Parte II do artigo original “Literatura e Responsabilidade Humanística: Empresas Responsáveis e Humanas do Século XXI”.*
No contexto do senso comum, assim como nos significados que se podem encontrar na maioria dos dicionários físicos e on line da nossa língua, o termo “Humanização” associa-se normalmente com o “ato ou efeito de tornar-se benévolo, gentil ou mais sociável”[1]. Analisando boa parte das propostas de “humanização” oferecidas não apenas no ambiente da saúde, mas no mundo corporativo em geral, verifica-se uma predominância deste sentido mais instrumental do conceito. “Humanizar” em muitos casos significa tornar os colaboradores e funcionários mais gentis, sociáveis, educados, visando incrementar o grau de empatia na relação com os clientes, o que, comprovadamente, traz grandes benefícios, aumentando as vendas e a lucratividade.
Nesta mesma perspectiva, pode-se inserir aquelas propostas de humanização que privilegiam a adequação dos ambientes de trabalho, visando a criação de espaços mais acolhedores e confortáveis, incluindo, por exemplo, salas de “descompressão”, “relaxamento”, munidas de sofás, pufes e até vídeo games.
Indo além, já são muitas as empresas que além de espaços, oferecem aos seus colaboradores atividades promotoras de bem-estar físico e mental, como yoga, meditação, mindfulness, o que também parece refletir diretamente no aumento da produtividade e do nível de felicidade.
Sem negar a validade, importância e efetividade de todas essas ações humanizadoras no contexto corporativo, constatamos, ao longo de todos esses anos de pesquisa e trabalho empírico, que tal perspectiva “técnico-funcional” de humanização, se não deixa de trazer inegáveis contribuições e resultados positivos, à larga se mostra, entretanto, insuficiente e problemática. Isso porque, como já demonstramos antes, essa abordagem parte de uma concepção antropológica limitada, que supervaloriza as dimensões cognitivas e comportamentais do ser humano, desvalorizando as afetivas e reflexivas. Assim, se num primeiro momento é possível verificar uma mudança significativa no comportamento dos destinatários das ações humanizadoras e identificar uma elevação nos índices de qualidade de vida e satisfação, o “efeito” humanizador tende, em pouco tempo, a se dissolver e, em alguns casos, como descrevíamos atrás, a gerar consequências adversas e até contrárias.
Se se pretende operar um efetivo processo de humanização, com resultados transformadores a longo prazo, é preciso adotar uma nova perspectiva antropológica, diferente daquela que predomina atualmente e que tende a considerar o ser humano como uma projeção das nossas próprias criações. Sim, pois ingenuamente encantados com as realizações científicas e tecnológicas dos últimos tempos, em especial no âmbito da cibernética e da inteligência artificial, tendemos a considerar que nossos cérebros (nossa maneira de pensar, de ser) sejam como os das máquinas que construímos. Desta forma, se hoje é possível encontrar um meio de realizar praticamente qualquer operação por meio da programação dos cérebros artificiais, porque não encontrar processos igualmente eficazes no âmbito natural? Teorias e propostas como as da Programação Neurolinguística e outras semelhantes, na esfera das Neurociências e da Biopsicologia são um exemplo muito eloquente desta crença. Nesta linha, assim como acredita-se ser possível “reprogramar” certos hábitos e procedimentos cognitivos tais como velocidade de leitura e aquisição de novas habilidades intelectuais, imagina-se que, da mesma forma, seja possível “incutir” comportamentos mais “humanos” nas pessoas, através de procedimentos de treinamento e “reprogramação”. Não é à toa, portanto, que em muitos lugares onde se adota esse ideal, fala-se, quase que instintivamente, de “Programas” de Humanização. Por detrás dessa terminologia está a crença (muitas vezes inconsciente, claro) de que é possível humanizar algoritmicamente.
Eis aqui o cerne daquilo que chamamos atrás de equívoco antropológico. Se nossos computadores expressam nossa imagem e semelhança, isso não significa que seus cérebros se identificam com os nossos. Gostemos ou não, somos muito mais complexos que os mais complexos dos nossos computadores. Apresentamos, por um lado, muito mais “defeitos” e “limitações” do que eles – no que diz respeito justamente às operações algorítmicas – porém, por outro, possuímos características e capacidades – principalmente no âmbito dos afetos, das intuições e dos sentimentos – que são e parece que sempre serão irreprodutíveis na dimensão da inteligência artificial. E é justamente essa dimensão dificilmente programável e controlável que nos faz maiores e diferentes das coisas magníficas que criamos e que nos torna insuperáveis, enfim, que nos faz humanos. Portanto, pensar a humanização numa perspectiva algorítmica e programável é algo não apenas ilusório, mas também equivocado.
Esta noção da humanização enquanto processo de progressiva ampliação parece encontrar uma de suas formulações mais felizes na frase que Montesquieu, em seu tratado sobre O Gosto[2], usa para descrever esse movimento que vimos caracterizando: “ampliação da esfera da presença do ser”. Para o filósofo francês do século XVIII, o homem se humaniza na medida em que vai ampliando suas experiências sensoriais, afetivas, cognitivas e relacionais. Para ser humano estar vivo não basta, é preciso existir, ou seja, realizar experiências, ampliar o campo de visão, de sensações, de sentimentos, de pensamentos, de conhecimentos e então ir realizando a integralização crítica de todas essas experiências na formação da consciência e do gosto[3]. Por isso, para que haja humanização é preciso que o homem saia, que ele ultrapasse os limites impostos pela natureza, pela família, pela sociedade. Montesquieu considerava a viagem como um meio privilegiado para a realização deste processo de ampliação do ser que caracteriza a humanização. A viagem, segundo Montesquieu, amplia os horizontes, desloca a perspectiva, o ponto de vista do sujeito, levando a olhar o cotidiano a partir do inusitado e do estranho, do alheio. Essa ampliação da experiência dos sentidos, dos afetos e da inteligência que as viagens proporcionam é a principal base para a ampliação da esfera do ser.
Essa concepção que associa o processo de humanização com a experiência de saída e viagem reflete, por sua vez, a própria noção de realização, de conhecer-se a si mesmo e tornar-se o que se deve ser presente nas narrativas caracterizadas pela jornada do herói. Na mais antiga delas, base e fundamento para todas que vieram depois na Civilização Ocidental, a Odisseia de Homero[4], conta-se a história de um herói que depois de haver saído e vivido muitas aventuras busca o retorno para casa – Odisseu (em grego) ou Ulisses (em latim) – e também, paralelamente, a história de seu filho, Telémaco, que saí em viagem em busca do seu pai ausente. Em ambas as trajetórias, daquele que volta e daquele que sai, vislumbra-se, de forma icônica e arquetípica, o processo de humanização enquanto processo de ampliação da esfera do ser – o ir tornando-se cada vez mais humano, na medida em que se vivencia as experiências que as viagens de ida e de retorno possibilitam.
A imagem da saída, de romper as barreiras, de ir do estreito para o largo, do limitado ao amplo, apresenta-se associada com o fenômeno da humanização não apenas no movimento de desenvolvimento biológico e psicológico – nascimento (sair do útero), crescimento (ampliar as experiências sensoriais), amadurecimento (ampliar o conhecimento, sabedoria) – como em praticamente todas as grandes narrativas da humanidade que tratam direta ou indiretamente do tornar-se humano. Assim, todo movimento essencialmente humanizador se apresenta como uma verdadeira aventura; uma viagem que se inicia com uma experiência interpelativa e que prossegue, em meio a desafios, perigos, dores e também a prazeres, êxtases e descobertas, que na sua mescla e combinação, vão compondo o ser humano no encontro consigo mesmo e na realização do seu ethos.
De acordo com Montesquieu, estas viagens que possibilitam a ampliação da esfera da presença do ser não devem ser entendidas apenas no sentido físico, material do termo. Segundo o filósofo, toda experiência estética – experiência que nos desperta e nos tira de nós mesmos – não deixa de ser ela mesma uma viagem. Assim, tanto quanto uma excursão a algum lugar longínquo e exótico, a fruição de uma obra de arte ou a leitura de um bom livro de literatura podem provocar efeito semelhante e, em alguns casos, ainda mais mobilizadores ou humanizadores que uma viagem real.
É essa, pois, a humanização a que se refere os grandes poetas, filósofos e humanistas ao longo da história. É essa a humanização que efetivamente transforma e que, ao afetar as pessoas acaba por impactar nos ambientes em que vivem e trabalham essas pessoas, tornando-os mais humanos. É esta, pois, a humanização efetiva que se deve propor e buscar no ambiente corporativo como demonstrado pelas experiências bem-sucedidas do uso da Literatura conforme a metodologia do Laboratório de Leitura (LabLei) que explicaremos em seguida.
Alexandre Seraphim é CEO da Ferring Brasil.
Dante Gallian é Professor e Fundador da Responsabilidade Humanística®️.
[1] Dicionário on line da Língua Portuguesa. https://www.dicio.com.br/humanizacao/
[2] MONTESQUIEU, Op.cit.
[3] Op. Cit. Ideia semelhante encontramos no conceito de Perijivanie de Vigotsky. Ver Psicologia da Arte. São Paulo, Martins Fontes, 2015.
[4] HOMERO, Odisseia. Trad. de Frederico Lourenço. São Paulo, Penguin/Cia das Letras, 2017.
* Acompanhe a newsletter da SWISSCAM para receber as próximas partes de continuação deste artigo, que é uma adaptação do livro que será publicado no último trimestre de 2020 entitulado “Responsabilidade Humanística: um caminho de humanização e saúde para o mundo corporativo”.