Nos últimos anos, temos observado um notável aumento das relações comerciais entre empresas situadas em países diferentes, impulsionado pelo avanço da tecnologia e pela crescente interconexão global dos negócios. Isso é particularmente relevante para as empresas suíças no Brasil, que se envolvem em uma variedade de operações (desde a importação de bens e serviços, até o licenciamento de intangíveis) com empresas estrangeiras, incluindo a própria matriz.
Em relação à legislação tributária que disciplina a incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre rendimentos de empresas situadas no exterior, historicamente, houve divergências interpretativas por parte da Receita Federal do Brasil (RFB) quanto ao momento da ocorrência do fato gerador do IRRF. Essas divergências criaram insegurança jurídica e desafios para as empresas que buscam cumprir as disposições legais.
O artigo 744 do Decreto nº 9.580/2018 (também conhecido como “RIR/2018”) estabelece que rendimentos e proventos pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos por fonte localizada no Brasil a pessoas físicas ou jurídicas residentes no exterior estão sujeitos à incidência na fonte à alíquota de 15%.
O mesmo artigo estabelece que o fato gerador do IRRF ocorre, dentre outras hipóteses, no momento do crédito da renda ou do provento. Aqui surge a discussão sobre a interpretação do conceito de crédito. Bastaria um mero creditamento contábil, sem a efetiva remessa dos recursos para que surja a obrigação de recolher o IRRF? Na prática, observa-se que muitas empresas, ao receberem uma invoice de suas matrizes em operações intercompany, optam por deduzir a respectiva despesa da base de cálculo do Imposto de Renda devido localmente, mas somente recolhem o IRRF no momento da efetiva remessa dos valores à empresa estrangeira.
Historicamente, as autoridades fiscais têm sustentado a interpretação de que o termo “crédito” se refere ao momento em que a dívida é registrada nos livros contábeis como contas a pagar pelo devedor.
Não obstante, em agosto de 2020, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisão unânime no Recurso Especial nº 1.864.227/SP, estabelecendo que o mero registro contábil da dívida sob a rubrica de contas a pagar não bastaria para configurar o fato gerador do IRRF.
De acordo com a Corte Superior, o fato gerador do imposto de renda está vinculado à aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda, conforme preceitua o artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN). A disponibilidade econômica se materializaria quando a renda é efetivamente recebida, ou seja, quando o valor é acrescido ao patrimônio do contribuinte. Já a disponibilidade jurídica resulta do direito de crédito que permite ao contribuinte dispor dos valores mediante um título jurídico.
Nessa linha, a Primeira Turma do STJ entendeu que o mero lançamento contábil da dívida não corresponde à disponibilização econômica da renda, uma vez que o dinheiro ainda não está diretamente sob a posse da pessoa jurídica credora, tampouco à disponibilização jurídica da renda, já que, com o registro contábil anterior ao vencimento da dívida, nenhum direito ou título é concedido à sociedade empresarial credora.
Desta forma, a Corte Superior concluiu que o fato gerador do IRRF deve ocorrer na data do vencimento ou do pagamento antecipado da dívida, o que ocorrer primeiro. Isso se deve ao fato de que, na data do vencimento, a obrigação de pagar a quantia certa torna-se exigível, permitindo à credora exercer todos os direitos referentes ao seu crédito com plenitude, o que configura a disponibilidade jurídica. Por outro lado, no caso do pagamento antecipado da obrigação, o dinheiro passa a estar sob a posse e controle imediatos da pessoa jurídica estrangeira, enquadrando-se no conceito de disponibilidade econômica.
A partir da decisão acertada do STJ, observa-se uma mudança de postura nos órgãos administrativos, merecendo destaque a Solução de Consulta COSIT nº 43, de 23 de março de 2021, por meio da qual a RFB concluiu que o fato gerador do IRRF sobre rendimentos remetidos a residentes ou domiciliados no exterior com base no “crédito” ocorre com o vencimento da obrigação.
O caso tratou da aquisição de licenças de software por uma empresa brasileira de uma empresa australiana para posterior revenda no mercado interno. Após adquirir as licenças de software, a empresa brasileira registrava a dívida em seu passivo (“crédito”) referente à sua obrigação de pagamento à empresa australiana e, depois de 30 dias, realizava a remessa do valor por meio de um contrato de câmbio.
Considerando o formato da operação comercial praticada, a empresa brasileira indagou se o fato gerador do IRRF deveria ser considerado o “crédito” ou a efetiva “remessa” de rendimentos ao exterior.
A RFB destacou que, no caso, o fato gerador do IRRF é, de fato o crédito. No entanto, o crédito não corresponderia ao mero registro contábil da dívida no passivo da empresa.
Nesse sentido, argumentou que é necessário verificar se, além do registro contábil (“crédito”) como uma mera provisão ou reconhecimento antecipado da despesa, houve a disponibilidade econômica ou jurídica da renda. A expressão “crédito”, conforme previsto na lei, indica que o imposto é devido quando o rendimento se torna juridicamente disponível para o credor. Enquanto não vencido o prazo previsto no contrato ou efetivamente prestado o serviço, gerando o direito à contraprestação, o credor não pode reclamar os rendimentos dele decorrentes.
Assim, no caso de operações relacionadas ao licenciamento de intangíveis ou à importação de bens ou serviços, a disponibilidade jurídica ocorre quando o contrato é executado e o intangível, bem ou serviço é disponibilizado/prestado à empresa brasileira.
Portanto, é necessário ter em mente que em situações em que não há um contrato firmado entre uma empresa brasileira e uma empresa estrangeira, a empresa brasileira não estará obrigada a recolher o IRRF no momento em que registra contabilmente a provisão de despesas (conhecido como “crédito”) ou como geralmente fazem, somente quando efetuam a remessa de valores à empresa estrangeira. De acordo com o entendimento da Receita Federal, a obrigação de recolher o IRRF surge no momento em que há o licenciamento do intangível ou quando o serviço é prestado e a mercadoria é entregue, pois, somente nesse momento, presume-se que a dívida se tornou exigível.
Como já ressaltamos acima, com base em nossa experiência, notamos que muitas empresas desconhecem essa posição da Receita Federal, relacionada ao conceito de crédito juridicamente exigível e acabam por recolher o IRRF apenas na efetiva remessa dos valores, deduzindo a despesa da base de cálculo de seu Imposto de Renda local logo que recebem a invoice da matriz. Isso ocorre porque muitas empresas se utilizam desse prolongamento dos pagamentos à matriz como forma de financiar suas operações locais. Portanto, as empresas suíças que atuam no Brasil precisam estar conscientes do risco que estão assumindo nesta situação e da possibilidade de questionamentos por parte da Receita Federal em eventual fiscalização.
Autores: Marcelo Coimbra e Bruna Bianchi – FCR Law