Pedro Szajnferber De Franco Carneiro*
Luiz Ugeda*
Não adianta se preocupar com as peças do xadrez se não se conhece as regras do tabuleiro. No mercado de créditos de carbono, avanços tecnológicos permitem medir a captura de CO2 com alta precisão, mas essa sofisticação de nada vale se não há clareza sobre a titularidade das terras onde as florestas estão localizadas. Sem uma base jurídica sólida, qualquer tentativa de comercialização desses créditos se torna um risco.
A insegurança fundiária como barreira ao desenvolvimento não é um problema recente. Desde 1891, Rui Barbosa já apontava que um mercado imobiliário funcional dependia de um sistema confiável de registros e publicidade das propriedades. A Lei Torrens, que inspirava sua visão, pressupunha a existência de um serviço geográfico estruturado para garantir a integridade dos cadastros fundiários. Quase um século e meio depois, o mercado de créditos de carbono enfrenta o mesmo entrave: sem clareza sobre quem detém a propriedade da terra, não há segurança para as transações.
Já a certificação de créditos de carbono exige muito mais do que medições sofisticadas da captura de CO2. Sensores ultrassensíveis, inteligência artificial e modelagem molecular tornaram possível quantificar o estoque de carbono em cada árvore com precisão inédita. No entanto, a tecnologia ainda não consegue resolver a indefinição sobre quem tem o direito de comercializar esses créditos.
Essa incerteza fundiária é um problema global. Na Amazônia, a sobreposição de títulos, registros imprecisos e ocupações informais tornam inviável garantir a titularidade da terra com segurança jurídica. Mesmo que uma floresta seja rigorosamente monitorada, seus créditos podem estar vinculados a uma propriedade cuja posse é contestada. 0 risco não se restringe a países em desenvolvimento – nos Estados Unidos, disputas sobre direitos de uso da terra já resultam em litígios envolvendo créditos de carbono.
No Brasil, são vários os casos de fraudes envolvendo a titularidade fundiária. Em 2024, a Operação Greenwashing da Polícia Federal revelou um esquema de grilagem de aproximadamente 530 mil hectares de terras públicas no sul do Amazonas. Empresários foram acusados de apropriar-se ilegalmente dessas áreas para elaborar projetos de créditos de carbono, vendendo-os no mercado voluntário sem a devida legitimidade. A investigação apontou que o grupo obteve lucros estimados em R$ 120 milhões com a comercialização desses créditos fraudulentos. Em 2023, empresas de crédito de carbono foram denunciadas por grilagem no estado do Para. Projetos de REDD+ estavam sendo operados em áreas sobrepostas a assentamentos agroextrativistas estaduais, sem o conhecimento dos assentados. As denúncias apontaram que os créditos eram certificados com Cadastros Ambientais Rurais (CAR) emitidos pelos próprios assentados, que teriam sido induzidos a acreditar que o documento equivaleria ao título definitivo da terra.
Além da insegurança jurídica, a ausência de definição clara sobre a propriedade da terra pode gerar conflitos socioambientais. Comunidades indígenas e populações tradicionais frequentemente reivindicam direitos sobre territórios utilizados para a venda de créditos de carbono por empresas privadas. Sem um marco regulatório sólido, esses conflitos podem se agravar, comprometendo projetos de conservação.
0 mercado de carbono precisa mais do que tecnologia para se consolidar. Sem um sistema confiável de governança fundiária, o risco jurídico inviabiliza transações e afasta investidores. A digitalização dos registros e a interoperabilidade entre bases de dados podem reduzir a incerteza, mas só terão efeito se acompanhadas de reformas legais que garantam validade incontestável aos títulos de propriedade. Os métodos tradicionais de legal due diligence fundiárias se mostram como defasados, de alto custo e com eficácia reduzida para diagnosticar a vulnerabilidade territorial dos projetos de carbono.
0 paradoxo atual é que há tecnologia para medir a captura de carbono no nível molecular, mas questões básicas sobre quem tem direito a vender os créditos correspondentes seguem sem solução. Isso cria um ambiente de negócios arriscado e reduz a credibilidade do próprio mercado de carbono como instrumento de mitigação climática.
Governos, reguladores e investidores precisam compreender que o sucesso desse mercado depende tanto da segurança jurídica quanto da precisão tecnológica. Enquanto a titularidade fundiária seguir em aberto, nenhum modelo científico ou sensor de última geração poderá garantir que os créditos de carbono tenham valor real. Sem essa base jurídica, o mercado de carbono permanecerá uma promessa frustrada, incapaz de cumprir seu papel na transição para uma economia de baixo carbono.
*Pedro Szajnferber De Franco Carneiro e advogado, especialista em Direito Ambiental pela FGV/SP e Universidade de São Paulo, MBA em ESG pelo IBMEC. Socio de SPlaw Advogados
*Luiz Ugeda e advogado e geógrafo, e doutor em geografia com pós-doutorado em direito; fundador do portal Geocracia. Consulter de SPlaw Advogados